José
morreu, com justeza poética, num avião da Ponte Aérea, a meio
caminho entre São Paulo e Rio. Coração. Morreu de terno cinza e
gravata escura, segurando a mesma pasta preta com que desembarcava no
Santos Dumont todas as segundas-feiras, durante anos. Só que desta
vez a pasta preta desembarcou sobre o seu peito, na maca, como uma
lápide provisória.
-
O velho Paulista... - disseram seus colegas de trabalho, no velório,
lamentando a perda do companheiro tão sério, tão eficiente, tão
trabalhador. Seu apelido no Rio era Paulista.
A
mulher e o filho de 18 anos mantiveram uma linha de sóbria
resignação durante todo o velório. Aquele era o estilo de José.
Nada de arroubos ou demonstrações de sentimento. Sobriedade. Foi
ideia do filho que o enterrassem de colete. - A verdade - cochichou
um dos sócios de José na empresa - é que ele nunca se adaptou aos
hábitos cariocas...
-
Sempre foi um paulista desterrado - concordou alguém.
-
Desterrado?-estranhou um terceiro. - Mas vivia lá e cá... Foi nesse
ponto que entraram no velório, aos prantos, uma senhora e uma moça,
ambas vestindo jeans iguais e carregando as grandes bolsas de couro
com que tinham viajado de São Paulo.
-
Carioca! - gritou a mais velha, precipitando-se na direção do
caixão. - É você, Carioca?
-
Papai! - gritou a mais moça, debruçando-se sobre o solene defunto.
Consternação geral.
Dr.
Lupércio, o advogado da família, conseguiu que as duas mulheres de
José se reunissem em algum lugar afastado da câmara ardente. O mais
difícil foi arrancar a segunda mulher - na ordem de chegada ao
velório - de cima do caixão. Em pouco tempo confirmou-se o óbvio.
José tinha outra família em São Paulo. A filha tinha 15 anos. A
mulher do Rio foi seca:
-
A legítima sou eu.
-
Meu bem... - começou a dizer a outra.
-
Não me chame de seu bem. Nós nem nos conhecemos.
-
Calma, calma - pediu o Dr. Lupércio.
-
Agora eu sei por que o Carioca nunca quis me trazer ao Rio... - disse
a outra.
-
O nome dele é José. Ou era, até acontecer isto - disse a primeira,
não se sabendo se falava da morte ou da descoberta da segunda
família.
-
Lá em São Paulo toda a turma chama ele de Carioca.
-
“Turma?” - estranhou a primeira. No Rio eles não tinham turma.
Raramente saíam de casa. Um ou outro jantar em grupo pequeno.
Concertos, às vezes. Geralmente estavam na cama antes das dez.
Na
câmara ardente, o filho de José evitava o olhar da sua meia-irmã.
Os dois eram parecidos. Tinham os traços do pai. A moça, com os
olhos ainda cheios de lágrimas, comentara que aquela era a primeira
vez que via o pai de gravata. O filho ia dizer que não se lembrava
de jamais ter visto o pai sem gravata, mas achou melhor não dizer
nada.
Era
uma situação constrangedora.
-
Pobre do papai - disse a moça, soluçando. - Sempre tão
brincalhão... O filho entendia cada vez menos.
O
apelido dele, em São Paulo, era Carioca. Descia em Congonhas todas
as quintas-feiras de camiseta esporte. No máximo com um pulôver
sobre os ombros. Uma vez chegara até de bermudas e chinelos de dedo.
Gostava de encher o apartamento de amigos, ou sair com a turma para
um restaurante ou uma boate. E se alguém ameaçasse ir embora,
dizendo que “Amanhã é dia de trabalho”, ele berrava que
paulista não sabia viver, que paulista só pensava em dinheiro, que
só carioca sabia gozar a vida. Com sua alegre informalidade, fazia
sucesso entre os paulistas. Inclusive nos negócios, apesar do
mal-estar que causava sua camisa aberta até o umbigo, em certas
salas de reuniões.
Todas
as segundas-feiras voava para o Rio. Dizia que precisava pegar uma
praia, respirar um pouco.
-
Você não estranhava quando ele voltava do Rio branco daquele jeito?
perguntou a legítima.
-
Ele dizia que não adiantava pegar cor na praia, ficava branco assim
que pisava em Congonhas - disse a outra.
As
duas sorriram. Mais tarde, em casa, o Dr. Lupércio refletiu sobre o
caso.
-
Um herói de dois mundos - sentenciou.
A
mulher, como sempre, não estava ouvindo. O Dr. Lupércio continuou:
-
No Rio, era o paulista típico. Uma caricatura. Sim, é isto!
O
Dr. Lupércio sempre se agitava quando pegava uma tese no ar com seus
dedos compridos. Era isso. No Rio, ele era uma caricatura paulista. A
imagem carioca do paulista. Em São Paulo, era o contrário.
-
E mais. Quando fazia o papel do paulista proverbial, no Rio, era
gozação. Quando fazia o carioca em São Paulo, era estratégia de
venda. O advogado, no seu entusiasmo, apertou com força o braço da
mulher, que disse
“Ai,
Lupércio!”.
-
Você não vê? Ele estava sendo cariocamente malandro quando fazia o
paulista, e paulistamente utilitário quando fazia o carioca. Um
gigolô do estereótipo! Uma síntese brasileira! Mas qual dos dois
era o verdadeiro José?
Duas
viúvas dormiam sozinhas. A do Rio sem o seu José, aquela rocha de
critérios e responsabilidades em meio à inconsequência carioca. A
de São Paulo sem o seu Carioca, aquele sopro de ar marinho no cinza
paulista. As duas suspiraram.
Luís
Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
Muito legal!
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