Nossa
irmã Glória pariu e foi motivo de contentamentos familiares. Todos
festejaram, excepto o nosso velho, Zedmundo Constantino Constante,
que recusou ir aohospital ver a criança. No isolamento de seu quarto
hospitalar, Glória chorou babas e aranhas. Todo o dia seus olhos
patrulharam a porta do quarto. A presença de nosso pai seria a
bênção, tão esperada quanto o seu próprio recém-nascido.
– Ele
hã-de vir, há-de vir.
Não
veio. Foi preciso trazerem o miúdo a nossa casa para que o avô lhe
passasse os olhos. Mas foi como um olhar para nada. Ali no berço não
estava ninguém. Glória reincidiu no choro. Para ela, era como
sofrer as dores de um aborto póstumo. Suplicou a sua mãe Dona
Amadalena. Ela que falasse com o pai para que este não mais a
castigasse.
Falasse
era fraqueza de expressão: a mãe era muda, a sua voz esquecera de
nascer.
O
menino disse as primeiras palavras e, logo, o nosso pai Zedmundo
desvalorizou: – Bahh! Contrariava a alegria geral. À mana Glória
já não restava sombra de glória. Suspirou, na santa impaciência.
Suspiro tão audível, que o velho se obrigou a destrocar: –
Aprender a falar é fácil. Com o devido respeito de vossa mãe. Que
não é muda. Só que a voz lhe está adormecida.
Nossa
mãe – agora, a tão assumida avó Amada-lena – sacudiu a cabeça.
O homem sempre acinzentava a nuvem. Mas Zedmundo, no capítulo das
falas, tinha a sua razão: nós, pobres, devíamos alargar a garganta
não para falar, mas para melhor engolir sapos.
– E
é o que repito: falar é fácil. Custa é aprender a calar.
E
repetia a infinita e inacabada lembrança, esse episódio que já
conhecíamos de salteado. Mas escutamos, em nosso respeitoso dever.
Que uma certa vez, o patrão português, perante os restantes
operários, lhe intimou: – Você, fulano, o que é que pensa? Ainda
lhe veio à cabeça responder: preto não pensa, patrão. Mas
preferiu ficar calado.
– Não
fala? Tem que falar, meu cabrão.
Curioso:
um regime inteiro para não deixar nunca o povo falar e a ele o
ameaçavam para que não ficasse calado. E aquilo lhe dava um tal
sabor de poder que ele se amarrou no silêncio. E foram insultos.
Foram pancadas. E foi prisão. Ele entre os muitos cativos por
falarem de mais: o único que pagava por não abrir a boca. – Eu
tão calado que parecia a vossa mãe, Dona Amadalena, com o devido
respeito.
Meu
velho acabou a história e só minha mãe arfou a mostrar saturação.
Dona Amadalena sempre falara suspiros. Porém, em tons tão precisos
que aquilo se convertera em língua. Amadalena suspirava direito por
silêncios tortos.
Os
dias passaram mais lestos que as lembranças. Mais breves que as
lágrimas de nossa irmã Glória. O neto cumpriu o primeiro
aniversário. Nesse mesmo dia, deu os primeiros passos. Houve palmas,
risos, copos erguidos. Todos poliram júbilo menos Zedmundo,
encostado em seu próprio corpo.
– Não
quero aqui essa gatinhagem, ainda me parte qualquer coisa. Levem-no,
levem-no.
Meu
pai não terminou a intimação. Amadalena suspendeu-lhe a palavra
com esbracejos, somados ao seu cantar de cegonha. O marido, surpreso:
– Que é isto, mulher? Já a formiga tem guitarra? A mulher puxou-o
para o quarto. Ali, no côncavo de suas intimidades, o velho Zedmundo
se explicou. Afinal, ele sempre dissera: não queria netos. Os filhos
não despejassem ali os frutos do seu sangue.
– Não
quero cã disso. Eu não sou avô, eu sou eu, Zedmundo Constante.
Agora,
ele queria gozar o merecido direito: ser velho. A gente morre ainda
com tanta vida! – Você não entende, mulher, mas os netos foram
inventados para, mais uma vez, nos roubarem a regalia de sermos nós.
E
ainda mais se explicou: primeiro, não fomos nós porque éramos
filhos. Depois, adiámos o ser porque fomos pais. Agora, querem-nos
substituir pelo sermos avós.
A
avó ameaçou, estava farta, cansada. Desta vez, dada a quentura do
assunto, Amadalena preferiu escrevinhar num papel. Em letra gorda,
ela decretou: ou o marido se abrandava ou tudo terminava entre eles.
Ele que saísse, procurasse outro lugar. Ou era ela mesma que se
retirava. O velho Zed-mundo Constante respondeu, sereno: –
Amadalena, teu nome cabe na palma do meu coração. Mas eu não vou
mudar. Se o meu tempo é pouco, então vou gastá-lo com proveito.
Não
saiu ele, nem ela. Quem se mudou foi Glória. Ela e o marido
emigrados na cidade. E com eles o menino que era o consolo de nossa
mãe. Ela mais emudeceu, em seu já silencioso canto.
Não
passaram semanas, nos chegou a notícia – o genro falecera na
capital. Nossa irmã, nossa Glorinha perdera o juízo com a viuvez.
Internaram-na, desvalida como mulher, desqualificada como mãe. E o
menino, mais neto agora, chegava no primeiro machimbombo.
O
menino entrou e meu pai saiu. Enquanto se retirava, já meio oculto
no escuro ainda disse: – Tudo o que você não falou, esta certo,
Amadalena, mas eu não aguento.
O
nosso pai saiu para onde? Ainda nos oferecemos para o procurar. Mas a
mãe negou que fôssemos. O velho Zedmundo nunca tivera nem rumo
certo nem destino duradouro.
O
homem era mais falso que um teto. Voltou dias depois, dizendo-se
agredido por bicho feio, quem sabe hiena, quem sabe um bicho
subnatural? Surgiu na porta, ficou especado. Ali naquela moldura
feita só de luz se confirmava: porta fez-se é para homem sair e
mulher estreitar o tempo da espera. Meu velho emagrecera abaixo do
tutano, e em seus olhos rebrilhavam as mais gordas lágrimas.
Amadalena se assustou: Zedmundo estreava-se em choro. Seu marido
perdera realmente o fio de aprumo, sua alma se havia assim tanto
desossado? Depois, toda ela se adoçou, maternalmente. E se aproximou
do marido, acatando-o no peito. E sentiu que já não era apenas o
espreitar da lágrima. O seu homem se desatava num pranto. Vendo-o
assim, babado, e minguado, minha mãe entendia que o velho, seu velho
homem, queria, afinal, ser sua única atenção.
Conduzindo-o
pela mão, minha mãe o fez entrar e lhe mostrou o neto já dormindo.
Pela
primeira vez, meu pai contemplou o menino como se ele acabasse de
nascer. Ou como se ambos fossem recém-nascidos. Com desajeitadas
mãos, o velho Zedmundo levantou o bebê e o beijou longamente. Assim
demorou como se saboreasse o seu cheiro.
Minha
mãe corrigiu aquele excesso e fez com que o miúdo voltasse ao
quente do colchão. Depois o meu pai se enroscou no desbotado sofá e
minha mãe colocou-se por detrás dele a jeito de o embalar em seus
braços até que ele adormecesse.
Na
manhã seguinte, ainda cedo, encontrei os dois ainda dormidos: meu
velho no sofá e, a seu lado, o adiado neto. Minha mãe já tinha
saído. Dela restara um bilhete rabiscado por sua mão. Não resisti
e espreitei o papel. Era um recado para meu pai. Assim: “Meu
Zedmundo: durma comprido. E trate desse menino, enquanto eu vou à
cidade.” Entre rabiscos, emendas e gatafunhos, o bilhete era mais
de ser adivinhado que lido.
Dizia
que meu pai ainda estava em tempo de ser filho. Culpa era dela, que
ela já se tinha esquecido: afinal, meu pai nunca antes fora filho de
ninguém. Por isso, não sabia ser avô.
Mas
agora, ele podia, sem medo, voltar a ser seu filho.
“Seja
meu filho, Zedmundo, me deixe ser sua mãe. E vai ver que esse nosso
neto nos vai fazer sermos nós, menos sós, mais avós.” Dobrei o
bilhete e o deixei no tampo da mesa. Esperei na varanda que minha mãe
chegasse. Eu sabia que ela tinha ido buscar minha irmã Glória.
Antes, eu jurara contar esta história a minha irmã. Mas agora,
lembro as palavras de meu pai sobre o aprender a calar. E decido que
nunca, mas nunca, contarei isto a ninguém. Minha mãe, que é muda,
que conte.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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