domingo, 30 de outubro de 2016

Leitura de duas maneiras

Acho que lia no mínimo de duas maneiras. Primeiro, seguindo ofegante os eventos e as personagens, sem me deter nos detalhes, o ritmo acelerado da leitura às vezes arremessando a história para além da última página - como quando li Rider Haggard, a Odisséia, Conan Doyle e Karl May, autor alemão de histórias do Oeste selvagem. Em segundo lugar, explorando cuidadosamente, examinando o texto para compreender seu sentido emaranhado, descobrindo prazer no simples som das palavras ou nas pistas que as palavras não queriam revelar, ou no que eu suspeitava estar escondido no fundo da própria história, algo terrível ou maravilhoso demais para ser visto. Esse segundo tipo de leitura - que tinha algo da qualidade da leitura de histórias policiais - eu descobri em Lewis Carrol , Dante, Kipling, Borges. Eu lia também baseando-me no que supunha que um livro fosse (rotulado pelo autor, pelo editor, por outro leitor). Aos doze anos de idade, li A caçada de Tchekov numa coleção de romances policiais, e, acreditando ser Tchekov um escritor russo desse gênero, li depois “Senhora com Cachorrinho” como se tivesse sido escrita por um concorrente de Conan Doyle - e gostei da história, embora julgasse o mistério um tanto ralo. Da mesma forma, Samuel Butler fala de um certo Wil iam Sefton Moorhouse, que “imaginava estar sendo convertido ao cristianismo ao ler a Anatomia da melancolia de Burton, que ele confundira com a Analogia de Butler, por recomendação de um amigo. Mas o livro o intrigou bastante”. Numa história publicada na década de 1940, Borges sugeriu que ler A imitação de Cristo, de Thomas Kempis, como se tivesse sido escrito por James Joyce “seria uma renovação suficiente para aqueles exercícios espirituais tênues”.
Alberto Manguel, in História da leitura

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