O
brinquedo essencial do homem é a bola. Quem ganha uma bola descobre
dois mundos, o de dentro e o de fora. Um Psicólogo do futebol
imagina a seguinte cena: meninos jogam na rua; a bola sobra para o
cavalheiro que passa. Que fará o austero transeunte? Ficará
indiferente? Devolverá a bola com as mãos? Já vimos todos nós o
que ele irá fazer: o homem, sem perder a gravidade rebate a bola com
o pé, aparentemente para prestar um serviço à garotada, mas na
Verdade porque não resiste ao elástico e impulsivo prazer de dar um
chute. É sempre um grande prazer, uma das coisas agradáveis da
vida, dar um chute na bola, sobretudo quando conseguimos colocá-la
na meta almejada. O Poeta Rainer Maria Rilke intuiu bem os símbolos
contidos na bola e no jogo da bola: a lei da gravidade e a liberdade
do voo são valores atuantes da realidade humana. Atirar e agarrar
são formas fundamentais do nosso comportamento diante da existência.
Antes de Rilke, o educador Fröbel havia escrito: "A esfera é
para mim um símbolo da plenitude realizada; é o símbolo de meus
princípios fundamentais de educação e de vida, que são do tipo
esférico.
A
lei esférica é a lei fundamental de toda formação humana
verdadeira e satisfatória.
As
nossas peladas adultas começaram há mais de vinte anos no quintal
dum apartamento térreo em Ipanema. Um flamboaiã jogava de beque
central dum lado, uma palmeirinha do outro. O primeiro quase me
inutilizou para a prática do velho e violento esporte bretão.
Passamos depois a jogar no parque dum laboratório farmacêutico da
Rua Marquês de São Vicente, estraçalhando as flores, sim,
estraçalhando as flores do nosso jardim da infância,
para silenciosa mas indiscutível indignação do jardineiro
português.
Um
companheiro nosso, zagueiro de recursos, resolveu reservar parte dum
loteamento seu na Gávea, onde começou a construir um campo legal.
Foi um deus-nos-acuda. Os amigos dele, distintos homens de negócio,
não entendiam nada. O próprio engenheiro das obras fazer um campo
de futebol? Os que não entenderam o nosso campo tinham perdido
irremediavelmente (danem-se) a infância. A infância é apenas isto:
a sensação de que viver é de graça.
Foi
duro: quando começamos, os poucos homens sérios que jogavam peladas
viviam mais ou menos clandestinos nos altos de Correias e da Tijuca.
Sofremos
oposição de todos os setores: o familiar, o profissional e o
social. Usaram contra nós todos os instrumentos, contra nós a
intimidação médica (“Cuidado com as coronárias!”), a
declarada suspeita sobre a nossa integridade mental, o sarcasmo
salgado e grosso, as explicações mais ou menos freudianas e as mais
ou menos adlerianas. Eram conta nós sobretudo os que haviam amado a
bola e não tinham mais a coragem de voltar à delícia da grama. Nós
mesmos, por abominável respeito humano, passamos a inventar as
desculpas que fossem tranquilizando os outros. Dizia um: a pelada é
um pretexto para a cervejinha estupidamente gelada. É bom um pouco
de exercício, dizia outro. O organismo foi feito para fazer força.
Os cardiologistas sabem que o coração anda sobre as pernas. Também
eu, com pusilanimidade, escrevi por aí que estávamos correndo atrás
dum restinho de infinda - o que é apenas parte da verdade.
A
verdade integral é a bola. O futebol paixão. Esse amor que faz um
homem de quarenta e tantos anos sofrear o sono da fadiga para
rememorar em câmara lenta o gol de cobertura que fez pela manhã.
Futebol
divide os homens como o álcool: há os que jogam moderadamente na
adolescência, sem muito gosto, só para passar o tempo e
desentorpecer a musculatura; aos que jogaram com algum fervor e
esqueceram de todo o
passado; existem afinal os alcoólatras do homens que adoram a Bola
como os fenícios adoravam Baal.
Esses
últimos são capazes de horrores: trocam a repousante feijoada na
casa do melhor amigo por um arranca-toco em Curicica. Trocam tudo, o
casamento da sobrinha, a festa de mulherio farto, o enterro da avó,
e até o encontro que o finado Raimundo chamava Conheço um que voou
de Paris para Roma a fim de pegar o avião que o depositasse no Rio a
tempo de apanhar nosso torneio dominical. Outro, convidado para
apadrinhar um casamento em tarde de sábado, foi rude porém sincero,
colocando a noivinha nesta sinuca: um presente de duzentos no sábado
ou um cheque de mil se o casamento fosse transferido para outro dia
da semana. Um terceiro dava um vestido caro à mulher (a própria),
contanto que ela o deixasse agarrar no gol no fim de semana, em vez
de subir para as elegâncias de Petrópolis.
São
assim os veteranos, irremovíveis.
Às
vezes, línguas más dizem que estamos fazendo o vestibular para o
Asilo São Luís. Pouco nos importa. Estejam todos certos de que
levaremos uma bola para o pátio do asilo.
Paulo
Mendes Campos, in O
gol é necessário
Nenhum comentário:
Postar um comentário