Seria
difícil para mim levar adiante aquilo que faço com maior prazer se
não escrevesse por vezes um diário. Não que eu utilize essas
anotações; elas nunca são a matéria-prima daquilo em que estou
trabalhando. Porque um homem que conhece a intensidade de suas
impressões; que sente cada detalhe de cada dia como se ele fosse seu
único dia; que consiste — não se pode exprimir de outra forma —
justamente no exagero, mas que não combate essa sua predisposição,
pois para ele importa a ênfase, a nitidez e a concretude de todas as
coisas que perfazem a vida — esse homem poderia explodir ou mesmo
partir-se em pedaços se não se tranquilizasse num diário.
Tranquilizar-me
talvez seja a principal razão porque escrevo um diário. É quase
inacreditável o quanto a frase escrita pode acalmar e domar o ser
humano. A frase sempre é uma outra coisa, diferente daquele que a
escreve. Ela surge como algo estranho diante dele, como uma muralha
repentinamente sólida por sobre a qual não se pode saltar. Talvez
seja possível contorná-la mas, antes que se chegue ao outro lado,
assoma, formando com essa, um ângulo agudo, uma nova muralha: uma
nova frase, não menos estranha, nem menos sólida e elevada,
convidando também a ser contornada. Aos poucos surge um labirinto,
no qual o construtor ainda, mas com dificuldade, se reconhece. Ele se
acalma em meio a seu dédalo.
Para
aquelas pessoas que compõem o círculo mais próximo em torno de um
poeta, seria insuportável ouvi-lo falar de tudo aquilo que o
estimula. Estímulos são contagiosos, e aquelas pessoas, como é de
se esperar, também têm sua vida própria, que não pode consistir
apenas nos mesmos estímulos daquele de quem estão próximas; caso
contrário, morreriam sufocadas por ele. Além disso, existem coisas
que não se podem dizer a ninguém, nem mesmo ao mais próximo,
porque se tem muita vergonha delas. Não é bom que não sejam
expressas de modo algum, nem que caiam no esquecimento. Os mecanismos
com cujo auxílio contamos para facilitar nossas vidas encontram-se,
no entanto, muito bem desenvolvidos. De início, dizemos um pouco
vacilantes: “Realmente não tive culpa”; e logo, num piscar de
olhos, a coisa é esquecida. Para evitar essa falta de dignidade,
devemos anotar o acontecido, e mais tarde, talvez muitos anos mais
tarde — quando menos se espera, quando a autossatisfação já nos
transpira por todos os poros —, depararmos de novo com ele,
horrorizados: “Eu fui capaz de tal coisa; eu fiz isso”.
A religião, que absolve para sempre de tais horrores, talvez possa
ser boa para aqueles cujo ofício não é alcançar uma consciência
plena e vigilante dos processos interiores.
Quem
realmente quer saber tudo aprende melhor em si mesmo. Mas não pode
poupar-se: precisa tratar a si próprio como um outro o faria, e até
com maior rigor.
A
monotonia de muitos diários reside no fato de que neles não há
nada que clame para ser tranquilizado. É quase inacreditável que
alguns estejam satisfeitos com tudo ao seu redor, e mesmo com um
mundo prestes a ruir; outros, a despeito de todas as vicissitudes,
estão contentes consigo.
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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