Eram
três: Gilda, Flornela e Evelina. Filhas do viúvo Rosaldo que, desde
que a mulher falecera, se isolara tanto e tão longe que as moças se
esqueceram até do sotaque de outros pensamentos. O fruto se sabe
maduro pela mão de quem o apanha. Pois, as irmãs nem deram conta do
seu crescer: virgens, sem amores nem paixões.
O
destino que Rosaldo semeara nelas: o serem filhas exclusivas e
definitivas. Assim postas e não expostas, as meninas dele seriam
sempre e para sempre. Suas três filhas, cada uma feita para um
socorro: saudade, frio e fome.
Olhemos
as meninas, uma por uma, espreitemos o seu silencioso e adiado ser.
Gilda,
a rimeira Gilda, a mais velha, sabia rimar. O pai deu contorno ao
futuro: a moça seria poetisa.
Mais
ela versejava, menos a vida nela versava. Esse era o cálculo de
Rosaldo: quem assim sabe rimar, ordena o mundo como um jardineiro. E
os jardineiros impedem a brava natureza de ser bravia, nos protegem
dos impuros matos.
Todas
as tardes, Gilda trazia para o jardim um volumoso dicionário. O
gesto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu
sentar-se era educado: só o vestido suspirava. Molhava o dedo sapudo
para folhear o grande livro. Aquele dedo não requebrava, como se
dela não recebesse nervo. Era um dedo sem sexo: só com nexo. Em voz
alta, consoava as tônicas: Sol, bemol, anzol.
De
quando em quando, uma brisa desarrumava os arbustos. E o coração de
Gilda se despenteava. Mas logo ela se compunha e, de novo,
caligrafava. Contudo, a rima não gerava poema. Ao contrário,
cumpria a função de afastar a poesia, essa que morava onde havia
coração. Enquanto bordava versos, a mais velha das três irmãs não
notava como o mundo fosforecia em seu redor. Sem saber, Gilda estava
cometendo suicídio. Se nunca chegou ao fim, foi por falta de
adequada rima.
Flornela:
a receitista, a do meio, Flornela, se gastava em culinárias
ocupações. No escuro úmido da cozinha, ela copiava as velhas
receitas, uma a uma. Redigia palavra por palavra, devagar, como quem
põe flores em caixão. Depois, se erguia lenta, limpava as mãos
suadas e acertava panelas e fogo. Dobrada sobre o forno como a
parteira se anicha ante o mistério do nascer.
Por
vezes, seus seios se agitavam, seus olhos taquicardíacos traindo
acometimentos de sonhos. E até, de quando em quando, o esboço de
vim cantar lhe surgia. Mas ela apagava a voz como quem baixa o fogo,
embargando a labaredazinha que, sob o tacho, se insinuava.
Os
fumos da cozinha já se tinham pegado aos olhos, brumecido seu
coração de moça. Se um dia ela dedicasse seu peito seria a um
cheiro, cumprindo uma engordurada receita.
Evelina:
a bordadeira Na varanda, ia bordando Evelina, a mais nova. Seus olhos
eram assim de nascença ou tinham clareado de tanto bordar? Certa
vez, ela se riu e foi tão tardio, que se corrigiu como se alma
estrangeira à boca lhe tivesse aflorado.
Lhe
doía se lhe dissessem ser bonita. Mas não diziam. Porque além do
pai, só por ali havia as irmãs. E, a essas, era interdito falar de
beleza. As irmãs faziam ponto final. Ela, em seu ponto, não tinha
fim.
Dizem
que bordava aves como se, no tecido, ela transferisse o seu calcado
voo.
Recurvada,
porém, Evelina, nunca olhava o céu. Mas isso não era o pior. Grave
era ela nunca ter sido olhada pelo céu.
Às
vezes, de intenção, ela se picava. Ficava a ver a gota engravidar
no dedo. Depois, quando o vermelho se excedia, escorrediço, ela nem
injuriava. Aquele sangue, fora do corpo, era o seu desvairo, o
convocar da amorosa mácula.
Em
ocasiões, outras, sobre o pano pingavam cristalindas tristezas.
Chorava a morte da mãe? Não. Evelina chorava a sua própria morte.
Três
por todas e todas por nenhum. Mas eis: uma súbita vez, passou por
ali um formoso jovem. E foi como se a terra tivesse batido à porta
de suas vidas. Tremeu a agulha de Evelina, queimou-se o guisado de
Flornela, desrimou-se o coração de Gilda.
No
tecido, no texto, na panela, as irmãs não mais encontraram espelho.
Sucedeu foi um salto na casa, um assalto no peito. As jovens
banharam-se, pentearam-se, aromaram-se.
Água,
pente, perfume: vinganças contra o tudo que não viveram. Gilda
rimou “vida” com “nudez”, Flornela condimentou
afrodisiacamente, Evelina transparentou o vestido.
Ardores
querem-se aplacados, amores querem-se deitados. E preparava-se o
desfecho do adiado destino.
Logo-logo,
as irmãs notaram o olhar toldado do pai. Rosaldo não tirava atenção
do intruso. Não, ele não levaria as suas meninas! Onde quer que o
jovem vagueasse, o velho pai se aduncava, em pouso rapineiro. Até
que, certa noite, Rosaldo seguiu o moço até à frondosa figueira.
Seu passo firme fez estremecer as donzelas: não havia sombra na
dúvida, o pai decidira por cobro à aparição. Cortar o mal e a
raiz.
As
três irmãs correram, furtivas, entre as penumbras e seguiram a cena
a visível distância. E viram e ouviram. Rosaldo se achegando ao
visitante e lhe apertando os engasganetes. A voz rouca, afogada no
borbulhar do sangue: – Você, não se meta com minhas filhas! O
moço, encachoado, rosto a meia haste. E ante o terror das filhas, o
braço ríspido de Rosaldo puxou o corpo do jovem. Mas eis que o
mundo desaba em visão. E os dois homens se beijaram, terna e
eternamente. Estrelas e espantos brilharam nos olhos das três irmãs,
nas mãos que se apertaram em secreta congeminação de vingança.
Há
muitos sóis. Dias é que só há um. Para Rosaldo e o visitante,
esse foi o dia. O derradeiro.
Mia
Couto, in O fio das Missangas
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