“Os
leitores de livros, uma família em que eu estava entrando sem saber
(sempre achamos que estamos sozinhos em cada descoberta e que cada
experiência, da morte ao nascimento, é aterrorizantemente única),
ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras
de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo
lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês
lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a
protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de
animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de
jogar a carta a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do
coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco;
o Tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o
organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na
página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo,
admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça
de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite,
sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus
sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do
oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no
céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de
decifrar e traduzir signos.
Algumas
dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida
foi criada para aquele propósito específico por outros seres
humanos - a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo
- ou pelos deuses, - o casco da tartaruga, o céu à noite.
Outras
pertencem ao acaso.
E,
contudo, em cada caso é o leitor que confere a um objeto, lugar ou
acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece
neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de
signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa
volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para
compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de
ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.”
Alberto
Manguel, in História da Leitura
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