quinta-feira, 29 de setembro de 2016

As fontes

Você podia ter ficado longe e sem correr riscos. Mas voltou. Entrou sem bigodes, com os cabelos tingidos e cortados curtos e óculos de mentira e um nome qualquer. Tinham se passado dois longos anos. Você pôde caminhar pelas ruas da cidade, embora pouco e com cuidado, e o coração parecia dar murros no peito e a cidade reconhecia você em segredo e o aceitava. E você me disse, com voz de touro, enquanto mordia uma maçã: “Tinha que voltar. Não se pode ficar sentado na própria segurança como se fosse a maior bunda do mundo”. Você estava muito nervoso e queria rir e não conseguia.
Pouco depois veio o verão, você mandou um recado, nos encontramos para tomar cerveja gelada. Você falou na frente de um exército de garrafas vazias. Você tinha podido mexer-se um pouco, quase nada, mas tinha sido suficiente: suficiente para que você sentisse o cheiro da fúria nos bairros, a cidade tinha os dentes apertados: “Se demoro um ano a mais, só encontro cinzas. E ainda não existem condições objetivas? Tem uns caras-de-pau... Você quer contradições mais superantagônicas? Daqui a pouco as pessoas vão brigar até pelo capim que cresce nas calçadas”.
As moscas passeavam, lentas, pelo ar pegajoso.
Essa desgraça toda vem grávida – você disse.
Bebeu a cerveja de um gole só e limpou a espuma da boca com as costas da mão.
Não quero dizer que seja tão fácil como soprar garrafas. Já sei que a fome também produz faquires. Você soma miséria e mais miséria e às vezes o resultado é apenas mais miséria. Já sei, a gente tem que respeitar a realidade. Foi difícil aprender isso. E mais difícil foi aprender que ela não tem nenhum motivo para nos respeitar. E, se tivermos de nos arrebentar, a solução é arrebentar-se e pronto, não é? Foi difícil aprender isso.
Um ar úmido e quente pesava sobre as ruas. Cedo ou tarde choveria, teria que chover, de repente estourariam os ventres das nuvens paridoras de tormentas. Você disse:
Será certo que no fundo somos cristãos apressados? Baixar o céu com as mãos. Nós também trazemos a boa notícia. O reino dos justos e dos livres... Juan teria gostado da ideia. Quero dizer, se estivesse vivo.
A cerveja estava densa, a espuma era um creme frio, era sentida na boca e na garganta e nas tripas. “As coisas são fáceis – você disse –, estão mais claras.” E em seguida você disse: “Mas serão mais difíceis para mim, agora. Já estão sendo, sabe?” E em seguida:
Foi muito duro para mim vir, sabe?
Você estava sentado, as costas contra a parede.
Porque agora tenho mulher.
Você nunca dava as costas a ninguém.
Nem mesmo podemos nos escrever. Não me queixo. É um preço que se paga e está bem e acontece a muitos outros.
Você falava com os olhos fixos na porta do bar, estava tenso, não movia nem um único músculo:
Quem sabe se vou vê-la de novo.
E, em seguida, olhando para a palma da mão aberta:
São os riscos da profissão, como dizia um samurai amigo.
Na janela, ondulava um bando de gaivotas. As gaivotas se precipitaram sobre o porto; um alvoroço branco entre mastros e fumaça e você dizia: “Eu tinha conseguido o que procurava e não me animava a lhe dizer. Nunca lhe disse. Veja só. Devem ser problemas de caráter. Ou talvez tenha sentido que não tinha esse direito. Sei lá. É uma desgraça. Ou nem isso”.
Calculou as palavras:
Já sei que, se não tivesse voltado, teria me sentido um traidor.
As gaivotas levantaram voo mais além das nuvens que estavam, escuras de chuva, no céu.
E já sei, também, porque soube, porque eu não sabia, que não estamos brigando apenas por um montão de coisas muito grandes e muito nobres. Não é que eu queira nada para mim. Não. É muito mais simples. E veja como foi besta o tempo que demorei para saber. Anos. Anos sem saber que também se podia estar nisso pelo sorriso triste de uma mulher e pela cintura livre de pistolas.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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