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Cada
pessoa gostaria de criar o seu próprio calendário, segundo o modelo
de toda a humanidade. O principal atrativo do calendário reside no
fato de ele ir sempre adiante. Tantos dias se passaram, outros tantos
virão. Os nomes dos meses retornam, e, com mais frequência, os dos
dias. Porém, o número que assinala os anos é sempre um outro. Ele
cresce, não pode jamais diminuir: a cada vez, recebe um ano a mais.
Crescendo constantemente, jamais se salta um ano e, dessa forma,
procede-se como na enumeração: sempre se acrescenta apenas um.
A contagem do tempo exprime de maneira precisa aquilo que o ser
humano mais deseja. O retorno dos dias, cujos nomes conhece, lhe dá
segurança. Ele desperta: que dia é hoje? Quarta-feira; é de
novo quarta-feira; já houve muitas quartas-feiras. Mas ele não
passou apenas por quartas-feiras: hoje é dia 30 de outubro, e isso é
algo maior. Já conheceu também um grande número de dias como esse.
Quanto ao número do ano, em seu crescimento linear, espera que ele o
leve junto para cifras cada vez mais elevadas. Segurança e desejo de
uma longa vida encontram-se na contagem do tempo, e esta foi como que
planejada para aquelas.
Todavia,
o calendário vazio é o calendário de todos. Cada ser humano
quer torná-lo seu, e para isso tem de preenchê-lo. Os dias se
dividem em bons e ruins, em livres e atribulados. Se ele os anota, em
poucas palavras ou letras, o calendário se torna inconfundivelmente
seu. Os acontecimentos mais importantes marcam efemérides. Na
juventude, estas ainda são poucas, o ano conserva uma espécie de
inocência, e a maioria dos dias é ainda livre e disponível para o
futuro. Mas aos poucos os anos vão ficando repletos, mais e mais
retornam as datas que foram decisivas e, por fim, o homem já não
tem mais um dia disponível em seu calendário: ele tem sua própria
história.
Conheço
pessoas que se riem dos calendários dos outros, “porque neles há
muito pouca coisa”. Mas só quem fez as anotações pode saber
realmente o que ele contém. A parcimônia dos signos produz o seu
valor. Eles existem através de sua concentração; o vivido que está
presente neles é como que encerrado por um encantamento, permanece
intacto e pode transformar-se repentinamente em algo gigantesco, em
outras circunstâncias num outro ano.
Ora,
não existe ninguém que não tenha direito a tais agendas. Cada
indivíduo é o centro do universo, e é apenas porque o universo
está repleto de tais centros que ele é precioso. Este é o sentido
da palavra “homem”: cada indivíduo é um centro ao lado de
incontáveis outros que são tão centros do universo quanto ele
próprio.
As
agendas foram e são o núcleo para os verdadeiros diários. Muitos
escritores que desconfiam de diários, porque nestes muito de suas
substâncias poderia dissipar-se, mantêm, no entanto, suas agendas.
Normalmente, as duas coisas se confundem. Eu as diferencio
rigorosamente. Nas agendas, que quase sempre são pequenos
calendários, anoto com toda concisão aquilo que me toca ou satisfaz
especialmente. Ali se encontram os nomes das poucas pessoas que nos
possibilitaram respirar, e sem as quais jamais teríamos suportado
todos os outros dias: os encontros com essas pessoas, o primeiro
contato, suas viagens, seus regressos, seus adoecimentos graves, sua
cura e, o mais terrível, sua morte. Há também os dias em que as
ideias nos assaltam, lançam-se sobre nós como espadas, submergem,
voltam a emergir, assim, metamorfoseando-se, consomem boa parte de
nossa vida. Algumas vezes registramos os dias em que uma ou outra
dessas ideias ganhou corpo, fazendo-nos contentes. A esses dias nos
quais se expandem os nossos domínios, contrapõem-se aqueles em que
nós próprios somos dominados pelos de outros — quando lemos algo
que sentimos que nunca mais nos deixará: o Woyzeck, os
Possuídos e o Ajax de Sófocles. Há também os
momentos em que ouvimos falar de costumes inauditos, de uma religião
desconhecida, de uma nova ciência, de uma nova extensão do
universo, de mais uma ameaça à humanidade ou, com muito menos
frequência, de uma esperança para ela. Além disso, existem os
lugares que finalmente pudemos conhecer, depois de o termos desejado
ardentemente. Registra-se tudo com apenas três ou quatro palavras.
Os nomes são o principal, pois se trata do dia em que novas coisas
ou novas pessoas entraram em nossas vidas; ou de alguém que,
desaparecido, volta a dar notícia, e é como se fosse algo novo.
Uma
coisa se pode dizer com segurança sobre essas agendas: ninguém se
interessa por elas. Para os que estão de fora, são
incompreensíveis, ou, se não chegam a sê-lo, tornam-se tediosas
pela própria monotonia de sua linguagem constante.
Tão
logo se tornem algo mais, tão logo haja um confronto com as coisas,
as agendas deixam o âmbito dos calendários anotados para passar ao
dos diários.
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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