sábado, 24 de setembro de 2016

A voz da mãe: calma, arrastada, amigável e humilde

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Dois cães pastores, muito parecidos, chegaram, trotando alegres, até que farejaram os estranhos; estacaram, cautelosos, rondando-os a distância, as caudas movendo-se lentamente, mas os olhos e os focinhos prontos para o ataque ou para o perigo. Um dos animais, esticando o pescoço, avançou, pernas tesas prontas para fugir, aproximando-se aos poucos das pernas de Tom e farejou ruidosamente. Depois voltou para trás e ficou olhando o velho, como que à espera de um sinal. O outro cachorro era menos audaz. Foi procurar algo que o pudesse divertir e encontrou-o na forma de uma galinha de penas vermelhas, atrás da qual começou a correr, latindo. Ouviu-se, em seguida, o cacarejar estridente de uma galinha ameaçada; penas vermelhas giravam no ar e a galinha conseguiu escapar a muito custo, batendo as asas diminutas num esforço de velocidade. O cachorro, satisfeito com a brincadeira, olhou aflito para os dois homens e deitou-se na poeira, batendo, contente, a cauda no chão.
Vamo entrar — disse o velho. — Ela tem que te ver de qualquer forma, então vamo entrar logo duma vez. Quero ver a cara dela quando te enxergar. Vamos. A comida deve estar pronta, com certeza. Já tem um tempinho que vi tua mãe às voltas com um porco salgado na frigideira. — E foi andando, atravessando o terreiro poeirento. Não havia varanda nessa casa; apenas um degrau e uma porta, e, ao lado dela, um cepo desgastado, de superfície amassada e polida por anos e anos de uso. Via-se nitidamente os veios da madeira, pois a poeira arruinava a parte mais macia. Um aroma de folhas de salgueiro queimadas pairava no ar, e assim que os três homens chegaram à porta, a esse aroma se misturava o cheiro de carne frita, e de pão de centeio fresco e de café, que acaba de ser fervido. O velho subiu o degrau e bloqueou a porta de entrada com o corpo troncudo, cheio. E ele disse: — Ô, velhinha, tão aqui uns camaradas que chegaram pela estrada e perguntam se não tem alguma sobra pra eles.
Tom ouviu a voz de sua mãe, a tão lembrada voz calma, arrastada, amigável e humilde.
Que entrem — disse ela. — Tem comida bastante. Diz pra eles lavar as mãos. O pão já tá pronto. Estou cuidando da carne. — E o chiado da banha quente na frigideira seguiu-se às suas palavras.
O velho penetrou na casa, entreabrindo a porta, e Tom pôde ver sua mãe. Ela estava tirando da frigideira as fatias de porco fritas, meio enroladas. A porta do forno estava aberta, à espera de um grande tabuleiro de pães escuros. A velha deu uma olhada à porta, mas o sol estava atrás de Tom e ela só pôde ver uma figura escura que se recortava na luz solar de um amarelo brilhante. E ela fez um sinal amistoso e disse:
Vão entrando, moços. Foi sorte eu ter feito bastante pão esta manhã.
Tom quedou, olhando-a. A velha era corpulenta, mas não gorda; engrossara devido aos muitos filhos e ao muito trabalho que teve na vida. Trajava um vestido cinzento em que outrora havia flores estampadas, flores já desbotadas, de modo que agora as flores eram cinzentas. O vestido ia até seus tornozelos e os pés fortes, largos, descalços moviam-se rápida, vivamente no chão. Os cabelos ralos, cor de aço, estavam amarrados à altura do pescoço, formando um nó largo e bojudo. Os braços grossos, sardentos, estavam nus até os cotovelos, e as mãos eram polpudas, mas delicadas, como as das meninazinhas gorduchas. Ela olhou para fora, de encontro à luz do sol. Seu rosto cheio não era flácido, e sim firme, conquanto brando. Os olhos cor de avelã sugeriam os muitos dramas que devem ter presenciado e pareciam ter atingido a dor e o sofrimento, escalando, degrau após degrau, até alcançarem uma serenidade e uma compreensão sobre-humanas. Ela parecia cônscia do papel importante de baluarte da família que desempenhava, parecia saber da importância da posição que ocupava e que ninguém lhe poderia jamais disputar. E visto que o velho Tom e as crianças não conheciam doença ou medo desde que a mãe não os sentisse, ela acabava por não conhecer qualquer hesitação. E quando algo de alegre, prazenteiro, lhes acontecia, eles primeiro olhavam para ela, a fim de ver se ela estava alegre, a mãe estava acostumada a tirar alegria mesmo das coisas menos alegres. Melhor que a alegria, era a calma que ela demonstrava. Sabia permanecer imperturbável. E dessa sua posição ao mesmo tempo grande e humilde, extraíra serenidade e uma calma superior. De sua posição de médica de almas, ela hauriu segurança, tranquilidade e domínio de gestos; de sua posição de árbitro, tornou-se distante e fria como uma deusa. Parecia saber que dependia dela o edifício de sua família; que se ela se mostrasse perturbada ou tomada pelo desespero, todo esse edifício desmoronaria ao menor sopro de ventos adversos.
A velha olhou outra vez para fora, para a figura obscura do homem. O velho estava próximo, tremendo de excitação.
Entrem! — gritou o velho. — Vão entrando. — E Tom, algo envergonhado, atravessou a soleira.
A velha ergueu a cabeça, com um ar gentil, de sobre a frigideira. E aí suas mãos desceram lentamente e o garfo que segurava caiu ruidosamente no chão. Seus olhos abriram-se desmedidamente e as pupilas se dilataram. Respirava ofegante, pela boca aberta. Depois fechou os olhos.
Graças a Deus! — disse. — Oh, graças a Deus! — E logo seu rosto tomou um ar preocupado. — Tommy, cê fugiu, Tommy? Cê não fugiu, né?
Não, mãe. Fui perdoado. Tenho aqui os papéis. — Ele bateu no peito.
A velha aproximou-se do filho rapidamente, sem fazer ruído com os pés descalços, e a sua fisionomia refletia encantamento. A mão pequena procurou o braço do filho e tocou-lhe os músculos rígidos. E então seus dedos procuraram, tateando, o rosto, como se fossem os dedos de um cego. E a sua alegria parecia aproximar-se da mágoa. Tom mordeu o lábio inferior. Os olhos da velha seguiram, interrogativos, o gesto do filho e ela viu o pequeno filete de sangue que lhe tingiu os dentes e descia pelo canto dos lábios. Então ela soube, voltou-lhe o controle e sua mão baixou. Respirou ofegante e disse num suspiro:
Bem! Quase a gente vai embora sem ocê. E ficava admirada até se ocê achasse a gente algum dia. — Apanhou o garfo do chão enfiou-o na banha que fervia na frigideira, tirando-o com um pedaço de carne de porco espetado na ponta. E puxou a cafeteira, prestes a cair, para a beira do fogão.
O velho Tom Joad deu um risinho.
Então nós te enganamo, hein, mãe? A gente queria te enganar e enganou mesmo. Cê ficou aí parada que nem uma ovelha que leva uma paulada. Só queria que o avô visse. Parecia que ocê levou uma paulada entre os dois olhos. O avô daria tanta pancada nas coxa que até desconjuntava as cadeira... que nem ele fez quando viu o Al dando tiros naquele avião do exército que passou por aqui, lembra? Pois foi assim, Tommy. Um dia ele passou sobre nós a uns quinhentos metros de altura, o Al meteu uns tiros nele. O avô gritou: não atira no filhote, Al, espera até que passe um já adulto! E aí ele deu uma palmada nas coxa que desconjuntou as cadeira.
A mãe riu e tirou uma pilha de pratos de estanho da prateleira.
Onde tá o avô, aquele velho diabo? — perguntou Tom.
A mãe dispôs os pratos sobre a mesa de cozinha e colocou copos ao lado de cada um. E disse confidencialmente:
Oh, ele e a avó dormem no celeiro! Tinham que ir lá fora muitas vezes, de noite, e viviam tropeçando nas crianças.
O pai intrometeu-se:
Hum, todas as noites, o avô ficava bravo. Tombava sobre o Winfield, e se o Winfield berrava o avô ficava danado e molhava as ceroulas e aí ficava mais danado ainda e daí a pouco acordava todo mundo em casa aos berros. Ele berrava e a gente caía na gargalhada. Oh, a gente teve umas hora gozadas! Uma noite, quando todo mundo andava gritando em casa, o teu irmão Al, que agora é um rapagão crescido, disse: que diabo, avô, por que o senhor não experimenta ser um pirata? Bem, isso fez o avô ficar danado de raiva e ele quis até pegar na espingarda. O Al, naquela noite, teve que dormir no campo. E agora o avô e a avó dormem no celeiro.
Ali eles podem dormir e acordar quando quiser — disse a mãe. — Ô pai — dirigiu-se ao marido —, vai lá e diz que o Tommy tá aqui. O avô sempre gostou mais do Tommy que dos outros netos.
Vou, sim — disse o pai. — Já devia até ter ido. — E ele saiu porta afora, atravessando o terreiro, agitando largamente os braços.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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