Dois
cães pastores, muito parecidos, chegaram, trotando alegres, até que
farejaram os estranhos; estacaram, cautelosos, rondando-os a
distância, as caudas movendo-se lentamente, mas os olhos e os
focinhos prontos para o ataque ou para o perigo. Um dos animais,
esticando o pescoço, avançou, pernas tesas prontas para fugir,
aproximando-se aos poucos das pernas de Tom e farejou ruidosamente.
Depois voltou para trás e ficou olhando o velho, como que à espera
de um sinal. O outro cachorro era menos audaz. Foi procurar algo que
o pudesse divertir e encontrou-o na forma de uma galinha de penas
vermelhas, atrás da qual começou a correr, latindo. Ouviu-se, em
seguida, o cacarejar estridente de uma galinha ameaçada; penas
vermelhas giravam no ar e a galinha conseguiu escapar a muito custo,
batendo as asas diminutas num esforço de velocidade. O cachorro,
satisfeito com a brincadeira, olhou aflito para os dois homens e
deitou-se na poeira, batendo, contente, a cauda no chão.
— Vamo
entrar — disse o velho. — Ela tem que te ver de qualquer forma,
então vamo entrar logo duma vez. Quero ver a cara dela quando te
enxergar. Vamos. A comida deve estar pronta, com certeza. Já tem um
tempinho que vi tua mãe às voltas com um porco salgado na
frigideira. — E foi andando, atravessando o terreiro poeirento. Não
havia varanda nessa casa; apenas um degrau e uma porta, e, ao lado
dela, um cepo desgastado, de superfície amassada e polida por anos e
anos de uso. Via-se nitidamente os veios da madeira, pois a poeira
arruinava a parte mais macia. Um aroma de folhas de salgueiro
queimadas pairava no ar, e assim que os três homens chegaram à
porta, a esse aroma se misturava o cheiro de carne frita, e de pão
de centeio fresco e de café, que acaba de ser fervido. O velho subiu
o degrau e bloqueou a porta de entrada com o corpo troncudo, cheio. E
ele disse: — Ô, velhinha, tão aqui uns camaradas que chegaram
pela estrada e perguntam se não tem alguma sobra pra eles.
Tom
ouviu a voz de sua mãe, a tão lembrada voz calma, arrastada,
amigável e humilde.
— Que
entrem — disse ela. — Tem comida bastante. Diz pra eles lavar as
mãos. O pão já tá pronto. Estou cuidando da carne. — E o chiado
da banha quente na frigideira seguiu-se às suas palavras.
O
velho penetrou na casa, entreabrindo a porta, e Tom pôde ver sua
mãe. Ela estava tirando da frigideira as fatias de porco fritas,
meio enroladas. A porta do forno estava aberta, à espera de um
grande tabuleiro de pães escuros. A velha deu uma olhada à porta,
mas o sol estava atrás de Tom e ela só pôde ver uma figura escura
que se recortava na luz solar de um amarelo brilhante. E ela fez um
sinal amistoso e disse:
— Vão
entrando, moços. Foi sorte eu ter feito bastante pão esta manhã.
Tom
quedou, olhando-a. A velha era corpulenta, mas não gorda; engrossara
devido aos muitos filhos e ao muito trabalho que teve na vida.
Trajava um vestido cinzento em que outrora havia flores estampadas,
flores já desbotadas, de modo que agora as flores eram cinzentas. O
vestido ia até seus tornozelos e os pés fortes, largos, descalços
moviam-se rápida, vivamente no chão. Os cabelos ralos, cor de aço,
estavam amarrados à altura do pescoço, formando um nó largo e
bojudo. Os braços grossos, sardentos, estavam nus até os cotovelos,
e as mãos eram polpudas, mas delicadas, como as das meninazinhas
gorduchas. Ela olhou para fora, de encontro à luz do sol. Seu rosto
cheio não era flácido, e sim firme, conquanto brando. Os olhos cor
de avelã sugeriam os muitos dramas que devem ter presenciado e
pareciam ter atingido a dor e o sofrimento, escalando, degrau após
degrau, até alcançarem uma serenidade e uma compreensão
sobre-humanas. Ela parecia cônscia do papel importante de baluarte
da família que desempenhava, parecia saber da importância da
posição que ocupava e que ninguém lhe poderia jamais disputar. E
visto que o velho Tom e as crianças não conheciam doença ou medo
desde que a mãe não os sentisse, ela acabava por não conhecer
qualquer hesitação. E quando algo de alegre, prazenteiro, lhes
acontecia, eles primeiro olhavam para ela, a fim de ver se ela estava
alegre, a mãe estava acostumada a tirar alegria mesmo das coisas
menos alegres. Melhor que a alegria, era a calma que ela demonstrava.
Sabia permanecer imperturbável. E dessa sua posição ao mesmo tempo
grande e humilde, extraíra serenidade e uma calma superior. De sua
posição de médica de almas, ela hauriu segurança, tranquilidade e
domínio de gestos; de sua posição de árbitro, tornou-se distante
e fria como uma deusa. Parecia saber que dependia dela o edifício de
sua família; que se ela se mostrasse perturbada ou tomada pelo
desespero, todo esse edifício desmoronaria ao menor sopro de ventos
adversos.
A
velha olhou outra vez para fora, para a figura obscura do homem. O
velho estava próximo, tremendo de excitação.
—
Entrem! — gritou o velho. — Vão
entrando. — E Tom, algo envergonhado, atravessou a soleira.
A
velha ergueu a cabeça, com um ar gentil, de sobre a frigideira. E aí
suas mãos desceram lentamente e o garfo que segurava caiu
ruidosamente no chão. Seus olhos abriram-se desmedidamente e as
pupilas se dilataram. Respirava ofegante, pela boca aberta. Depois
fechou os olhos.
—
Graças a Deus! — disse. — Oh, graças
a Deus! — E logo seu rosto tomou um ar preocupado. — Tommy, cê
fugiu, Tommy? Cê não fugiu, né?
— Não,
mãe. Fui perdoado. Tenho aqui os papéis. — Ele bateu no peito.
A
velha aproximou-se do filho rapidamente, sem fazer ruído com os pés
descalços, e a sua fisionomia refletia encantamento. A mão pequena
procurou o braço do filho e tocou-lhe os músculos rígidos. E então
seus dedos procuraram, tateando, o rosto, como se fossem os dedos de
um cego. E a sua alegria parecia aproximar-se da mágoa. Tom mordeu o
lábio inferior. Os olhos da velha seguiram, interrogativos, o gesto
do filho e ela viu o pequeno filete de sangue que lhe tingiu os
dentes e descia pelo canto dos lábios. Então ela soube, voltou-lhe
o controle e sua mão baixou. Respirou ofegante e disse num suspiro:
— Bem!
Quase a gente vai embora sem ocê. E ficava admirada até se ocê
achasse a gente algum dia. — Apanhou o garfo do chão enfiou-o na
banha que fervia na frigideira, tirando-o com um pedaço de carne de
porco espetado na ponta. E puxou a cafeteira, prestes a cair, para a
beira do fogão.
O
velho Tom Joad deu um risinho.
— Então
nós te enganamo, hein, mãe? A gente queria te enganar e enganou
mesmo. Cê ficou aí parada que nem uma ovelha que leva uma paulada.
Só queria que o avô visse. Parecia que ocê levou uma paulada entre
os dois olhos. O avô daria tanta pancada nas coxa que até
desconjuntava as cadeira... que nem ele fez quando viu o Al dando
tiros naquele avião do exército que passou por aqui, lembra? Pois
foi assim, Tommy. Um dia ele passou sobre nós a uns quinhentos
metros de altura, o Al meteu uns tiros nele. O avô gritou: não
atira no filhote, Al, espera até que passe um já adulto! E aí ele
deu uma palmada nas coxa que desconjuntou as cadeira.
A
mãe riu e tirou uma pilha de pratos de estanho da prateleira.
— Onde
tá o avô, aquele velho diabo? — perguntou Tom.
A
mãe dispôs os pratos sobre a mesa de cozinha e colocou copos ao
lado de cada um. E disse confidencialmente:
— Oh,
ele e a avó dormem no celeiro! Tinham que ir lá fora muitas vezes,
de noite, e viviam tropeçando nas crianças.
O
pai intrometeu-se:
— Hum,
todas as noites, o avô ficava bravo. Tombava sobre o Winfield, e se
o Winfield berrava o avô ficava danado e molhava as ceroulas e aí
ficava mais danado ainda e daí a pouco acordava todo mundo em casa
aos berros. Ele berrava e a gente caía na gargalhada. Oh, a gente
teve umas hora gozadas! Uma noite, quando todo mundo andava gritando
em casa, o teu irmão Al, que agora é um rapagão crescido, disse:
que diabo, avô, por que o senhor não experimenta ser um pirata?
Bem, isso fez o avô ficar danado de raiva e ele quis até pegar na
espingarda. O Al, naquela noite, teve que dormir no campo. E agora o
avô e a avó dormem no celeiro.
— Ali
eles podem dormir e acordar quando quiser — disse a mãe. — Ô
pai — dirigiu-se ao marido —, vai lá e diz que o Tommy tá aqui.
O avô sempre gostou mais do Tommy que dos outros netos.
— Vou,
sim — disse o pai. — Já devia até ter ido. — E ele saiu porta
afora, atravessando o terreiro, agitando largamente os braços.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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