Sandrinha
nunca esqueceu o seu primeiro dia na redação. Os olhares que
recebeu quando se encaminhou para a mesa do editor. De curiosidade.
De superioridade. Ou apenas de indiferença. Do editor não recebeu
olhar algum.
-
Quem é você? - ele perguntou, sem levantar a cabeça. Sandrinha se
identificou.
-
Ah, a novata - disse ele. - Você deve ser das boas. Recém formada e
já botaram a trabalhar comigo. Você sabe o que a espera?
-
Bem, eu...
-
Esqueça tudo o que aprendeu na escola. Isto aqui é a linha de
frente do jornalismo moderno. Aqui você tem que ter coragem. Garra.
Instinto. Você acha que tem tudo isso?
-
Acho que sim.
Ele
a olhou pela primeira vez. Seu sorriso era cruel.
-
É o que veremos - disse. - já vi muita gente quebrar a cara aqui.
Desistir e pedir transferência para a crônica policial. É preciso
ter estômago. Você tem estômago?
-
Tenho.
Ele
gritou:
-
Dalva!
Uma
mulher aproximou-se da mesa. Tinha a cara de quem já viu tudo na
vida e gostou de muito pouco. O editor perguntou:
-
Você já pegou o Rudi?
-
Estou indo agora.
-
Leve ela.
Dalva
olhou para Sandra como se tivesse acabado de tirá-la do nariz.
Voltou a olhar para o editor.
-
Não sei, chefe. O Rudi…
-
Quero ver do que ela é feita.
-
Está bem.
Antes
de saírem, Dalva perguntou para Sandra:
-
Que equipamento você usa?
Sandra
mostrou o que tinha dentro da bolsa. Dalva mostrou o seu.
-
Certo. Vamos sincronizar gravadores. Testando. Um, dois, três...
As
duas aproximaram-se da porta do apartamento de Rudi. Antes de bater
na porta, a veterana avisou:
-
Chegue para trás.
De
dentro do apartamento veio uma voz assustada.
-
Quem é?
-
Abra!
A
porta entreabriu-se. Rudi espiou para fora. Dalva empurrou a porta ao
mesmo tempo que tirava o gravador da bolsa. Sandra a seguiu para
dentro do apartamento. Rudi recuou.
-
Isto é invasão de privacidade! - gritou.
-
Quieto! Prepare-se para falar, Rudi. E lembre-se: tudo que você
disser pode ser usado na edição de domingo.
-
Não vou dizer nada.
Dalva
forçou-o a sentar. O gravador já estava a milímetros da sua boca.
-
Ah, vai - disse Dalva. - Vai dizer tudo. Loção de barba!
-
Ahn... "Animal", de Givenchy!
-
Cuecas justas ou tipo short?
-
Justas.
-
De que loja?
-
Não tenho uma loja favorita.
-
Pense melhor, Rudi.
-
Está bem. A "Papoulas".
-
Sua cor favorita.
-
Verde. Não! Azul!
-
Vamos, Rudi. É verde ou é azul?
-
Azul, azul!
-
Quem você levaria para uma ilha deserta?
-
Não sei. Me deixem pensar.
-
"Pensar'", Rudi? "Pensar"?! Você acha que está
respondendo para o suplemento cultural? Vamos, quem você levaria
para uma ilha deserta?
Dalva
registrou com surpresa que Sandrinha é que fizera a pergunta. Rudi
respondeu.
-
A minha mãe. Não. A Malu Mader.
-
Qual delas?
-
Não pode ser as duas?
-
Você sabe que não, Rudi. Estamos perdendo tempo. Quem?
-
A Malu Mader.
-
Pasta de dente.
-
Crest.
-
Seu livro de cabeceira.
-
Kalil Gibran.
-
Maior emoção.
-
Foi, foi... Quando minha cadela "Tutsi" teve filhotinhos.
-
Prato preferido?
-
Não sei. Não sei!
-
Sabe sim.
-
Picadinho de carne com ovo.
-
Sua filosofia.
-
Viver e deixar viver.
-
Se você não fosse você, quem gostaria de ser?
-
0... o...
-
Estamos esperando!
-
O Gerald Thomas ou o padre Marcelo Rossi!
-
Qual dos dois?
-
Fale!
Agora
Sandrinha também tinha seu microfone perto da boca de Rudi.
-
O padre Marcelo Rossi!
Rudi
começou a soluçar. As duas se olharam. Dalva permitiu-se um
sorriso.
-
Você é boa, novata. Acho que vai se dar bem neste trabalho...
-
Obrigada. Mas Sandra não tinha terminado.
-
Não pense que acabou ainda, Rudi. Sabonete!
Luís
Fernando Veríssimo,
in Comédias para
se ler na escola
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