―
Ei,
ela! Corre, gente, pôr tudo p'ra dentro... Olh'as portas, as
janelas...
Estavam
acabando de jantar, e todos corriam para o quintal, apanhar um resto
de roupa dependurada. Tinha dado o vento, caíam uns pingos grossos,
chuva quente. Os cachorros latiam, com as pessoas. O vento zunia,
queria carregar a gente. Miguilim ajudava a recolher a roupa ― não
podiam esquecer nenhuma peçazinha ali fora... ― ele tinha pena
daquelas roupinhas pobres, as calças do Dito, vestidinho de
Drelina... ― “p’ra dentro, menino! Vento te leva...” ― “Vem
ver lá na frente, feio que chega vai derrubar o mato...” ― era o
Dito, chamando. Os coqueiros, para cima do curral, os coqueiros
vergavam, se entortavam, as fieiras de coqueiros velhos, que
dobravam. O vento vuvo: viív... viív... Assoviava nas folhas dos
coqueiros. A Rosa passava, com um balde, que tinham deixado na beira
do curral. Três homens no alpendre, enxadeiros, que tinham vindo
receber alguma paga em toicinho, estavam querendo dizer que ia ser
como nunca ninguém não tinha avistado; estavam sem saber como
voltar para suas casinhas deles, dizendo como ia se passar tudo por
lá; aqueles estavam meio-tristes, fingiam que estavam meio-alegres.
De repente, deu estrondo. Que o vento quebrou galho do jenipapeiro do
curral, e jogou perto de casa. Todo o mundo levou susto. Quando foi o
trovão! Trovejou enorme, uma porção de vezes, a gente tapava os
ouvidos, fechava os olhos. Aí o Dito se abraçou com Miguilim. O
Dito não tremia, malmente estava mais sério. ― “Por causa de
Mamãe, Papai e tio Terêz, Papai-do-Céu está com raiva de nós de
surpresa...” ― ele foi falou.
―
Miguilim,
você tem medo de morrer?
―
Demais...
Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente
todos morresse juntos...
―
Eu
tenho. Não queria ir para o Céu menino pequeno. Faziam uma pausa,
só do tamanho dum respirar.
―
Dito,
você combina comigo para o gato se chamar Reibel?
―
Mas
não pode. Nome dele é Sossonho.
―
Também
é. Uai... Quem é que falou?
―
Acho
que foi Mãitina, o vaqueiro Jé. Não me importo.
Daí
deu trovão maior, que assustava. O trovão da Serra do Mutúm-Mutúm,
o pior do mundo todo, ― que fosse como podia estatelar os paus da
casa.Corda-de-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água.
Molhava o chão. Miguilim e Dito a curto tinham olho no teto, onde o
barulho remoía. A casa era muito envelhecida, uma vez o chuvão
tinha desabado no meio do corredor, com um tapume do telhado.
Trovoeira. Que os trovões a mau retumbavam. ― “Tá nas
tosses...” ― um daqueles enxadeiro falou. Pobre dos passarinhos
do campo, desassisados. O gaturamo, tão podido miúdo, azulzinho no
sol, tirintintim, com brilhamentos, mel de melhor ― maquinazinha de
ser de bem-cantar... ― “O gaturarninho das frutas, ele merece
castigo, Dito?” ― “Dito, que Pai disse: o ano em que chove
sucedido é ano formoso... —?” ― “Mas não fala essas coisas,
Miguili nestas horas.”
―
“P’ra
rezar, todos!” ― Drelina chamava. Chica e Tomezinho estavam
escondidos, debaixo da cama. Agora não faltava nenhum, acerto de
reunidos, de joelhos, diante do oratório. Até a mãe. Vovó Izidra
acendia a vela benta, queimava ramos bentos, agora ali dentro era
mais forte. Santa Bárbara e São Jerônimo salvavam de qualquer
perigo de desordem, o Magnificat era que se rezava! Miguilim soprava
um cisco da roupa de Rosa. Era carrapicho? Os vaqueiros, quando
voltavam de vaquejar boiadas por ruins matos, rente que esses tinham
espinhos e carrapichos até nos ombros do gibão. O Dito sabia
ajoelhar melhor? De dentro, para enfeitar os santos do oratório,
tinha um colarzinho de ovos de nhambu e pássaro-preto enfiados com
linha, era entremeado, doutro e dum ― um de nhambu; um de
pássaro-preto, depois outro de nhambu, outro de pássaro-preto...; o
pássaro-preto era azul-claro se descorando para verde, o de nhambu
era uma cor-de-chocolate clareado... Se o povo todo se ajuntasse,
rezando com essa força, desse medo, então a tempestade num átimo
não esbarrava? Miguilim soprava seus dedos, doce estava, num azado
de consolo, grande, grande.
Ele
tinha fé. Ele mesmo sabia? Só que o movido do mais-e-mais desce
tudo, e desluz e desdesenha, nas memórias; é feito lá em fundo de
água dum poço de cisterna. Uma vez ele tinha puxado o paletó de
Deus.
Guimarães
Rosa,
in Manuelzão
e Miguilim
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