quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Vento e chuva fortes

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Ei, ela! Corre, gente, pôr tudo p'ra dentro... Olh'as portas, as janelas...
Estavam acabando de jantar, e todos corriam para o quintal, apanhar um resto de roupa dependurada. Tinha dado o vento, caíam uns pingos grossos, chuva quente. Os cachorros latiam, com as pessoas. O vento zunia, queria carregar a gente. Miguilim ajudava a recolher a roupa ― não podiam esquecer nenhuma peçazinha ali fora... ― ele tinha pena daquelas roupinhas pobres, as calças do Dito, vestidinho de Drelina... ― “p’ra dentro, menino! Vento te leva...” ― “Vem ver lá na frente, feio que chega vai derrubar o mato...” ― era o Dito, chamando. Os coqueiros, para cima do curral, os coqueiros vergavam, se entortavam, as fieiras de coqueiros velhos, que dobravam. O vento vuvo: viív... viív... Assoviava nas folhas dos coqueiros. A Rosa passava, com um balde, que tinham deixado na beira do curral. Três homens no alpendre, enxadeiros, que tinham vindo receber alguma paga em toicinho, estavam querendo dizer que ia ser como nunca ninguém não tinha avistado; estavam sem saber como voltar para suas casinhas deles, dizendo como ia se passar tudo por lá; aqueles estavam meio-tristes, fingiam que estavam meio-alegres. De repente, deu estrondo. Que o vento quebrou galho do jenipapeiro do curral, e jogou perto de casa. Todo o mundo levou susto. Quando foi o trovão! Trovejou enorme, uma porção de vezes, a gente tapava os ouvidos, fechava os olhos. Aí o Dito se abraçou com Miguilim. O Dito não tremia, malmente estava mais sério. ― “Por causa de Mamãe, Papai e tio Terêz, Papai-do-Céu está com raiva de nós de surpresa...” ― ele foi falou.
Miguilim, você tem medo de morrer?
Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente todos morresse juntos...
Eu tenho. Não queria ir para o Céu menino pequeno. Faziam uma pausa, só do tamanho dum respirar.
Dito, você combina comigo para o gato se chamar Reibel?
Mas não pode. Nome dele é Sossonho.
Também é. Uai... Quem é que falou?
Acho que foi Mãitina, o vaqueiro Jé. Não me importo.
Daí deu trovão maior, que assustava. O trovão da Serra do Mutúm-Mutúm, o pior do mundo todo, ― que fosse como podia estatelar os paus da casa.Corda-de-vento entrava pelas gretas das janelas, empurrava água. Molhava o chão. Miguilim e Dito a curto tinham olho no teto, onde o barulho remoía. A casa era muito envelhecida, uma vez o chuvão tinha desabado no meio do corredor, com um tapume do telhado. Trovoeira. Que os trovões a mau retumbavam. ― “Tá nas tosses...” ― um daqueles enxadeiro falou. Pobre dos passarinhos do campo, desassisados. O gaturamo, tão podido miúdo, azulzinho no sol, tirintintim, com brilhamentos, mel de melhor ― maquinazinha de ser de bem-cantar... ― “O gaturarninho das frutas, ele merece castigo, Dito?” ― “Dito, que Pai disse: o ano em que chove sucedido é ano formoso... —?” ― “Mas não fala essas coisas, Miguili nestas horas.”
― “P’ra rezar, todos!” ― Drelina chamava. Chica e Tomezinho estavam escondidos, debaixo da cama. Agora não faltava nenhum, acerto de reunidos, de joelhos, diante do oratório. Até a mãe. Vovó Izidra acendia a vela benta, queimava ramos bentos, agora ali dentro era mais forte. Santa Bárbara e São Jerônimo salvavam de qualquer perigo de desordem, o Magnificat era que se rezava! Miguilim soprava um cisco da roupa de Rosa. Era carrapicho? Os vaqueiros, quando voltavam de vaquejar boiadas por ruins matos, rente que esses tinham espinhos e carrapichos até nos ombros do gibão. O Dito sabia ajoelhar melhor? De dentro, para enfeitar os santos do oratório, tinha um colarzinho de ovos de nhambu e pássaro-preto enfiados com linha, era entremeado, doutro e dum ― um de nhambu; um de pássaro-preto, depois outro de nhambu, outro de pássaro-preto...; o pássaro-preto era azul-claro se descorando para verde, o de nhambu era uma cor-de-chocolate clareado... Se o povo todo se ajuntasse, rezando com essa força, desse medo, então a tempestade num átimo não esbarrava? Miguilim soprava seus dedos, doce estava, num azado de consolo, grande, grande.
Ele tinha fé. Ele mesmo sabia? Só que o movido do mais-e-mais desce tudo, e desluz e desdesenha, nas memórias; é feito lá em fundo de água dum poço de cisterna. Uma vez ele tinha puxado o paletó de Deus.
Guimarães Rosa, in Manuelzão e Miguilim

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