sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O versificador

PERSONAGENS

O poeta
A secretária
O sr. Simpson
O Versificador
Giovanni

PRÓLOGO

Porta que se abre e fecha; entra o poeta.

SECRETÁRIA: Bom dia, mestre.
POETA: Bom dia, senhorita. Bela manhã, hein? A primeira depois de um mês de chuva. Pena que é preciso estar no escritório! Qual o programa para hoje?
SECRETÁRIA: Não há muita coisa: dois poemas conviviais, um poemeto para o matrimônio da condessa Dimitrópulos, quatorze inserções publicitárias e um cântico pela vitória do Milan, domingo passado.
POETA: Ninharia: antes da tarde terminamos tudo. Já ligou o Versificador?
SECRETÁRIA: Sim, já está quente. (Leve zumbido.) Podemos começar imediatamente.
POETA: Se não fosse ele... E pensar que a senhora era contra! Lembra dois anos atrás, que esforço, que trabalho extenuante?

Zumbido.

O VERSIFICADOR
Ouve-se em primeiro plano o matraquear de uma máquina de escrever.
POETA (fala para si, entediado e apressado): Ufa! Isso nunca termina. Mas que trabalho! Nunca um momento de livre inspiração. Epitalâmios, poesia publicitária, hinos sacros... o dia todo é assim. Acabou de copiar, senhorita?
SECRETÁRIA (continua a datilografar): Um instante.
POETA: Por favor, ande depressa.
SECRETÁRIA (continua datilografando com violência por poucos segundos, depois arranca a folha da máquina): Aqui está. Só mais um segundo, para reler.
POETA: Deixe assim, depois eu releio e faço as correções. Agora ponha outra folha na máquina, duas cópias, espaço duplo. Vou ditar diretamente, assim fazemos mais rápido; os funerais são amanhã, e não podemos perder tempo. Aliás, coloque na máquina aquele papel timbrado, com a tarja de luto, você sabe, aquele que mandamos imprimir para a morte do arquiduque da Saxônia. Tente não cometer erros, assim talvez não seja necessário recopiar.
SECRETÁRIA (executa: caminha, remexe numa gaveta, põe os papéis na máquina): Pronto. Pode ditar.
POETA (liricamente, mas sempre com pressa): “Lamento em morte do marquês Sigmund von Ellenbogen, prematuramente falecido”. (A secretária bate.) Ah, quase me esqueço. Eles querem em oitavas.
SECRETÁRIA: Em oitavas?
POETA (com desprezo): Sim, sim, oitavas, com rima e tudo. Desloque a tabulação. (Pausa: está buscando inspiração.) Mmm... bem, escreva:
Áridos campos, céus e sol escuros
Já todos sem ti, marquês Sigismundo…
(A secretária bate). Ele se chamava Sigmund, mas devo chamá-lo Sigismundo, é claro; senão, adeus rimas. Diacho de nomes ostrogodos. Espero que eles aceitem. De resto, aqui está a árvore genealógica... “Sigismundus”, sim, estamos no caminho certo. (Pausa.) Escuros, futuros... Senhorita, me passe o rimário. (Consultando o rimário). “Escuros: maduros, furos, esconjuros, morituros...”, o que será esse “morituros”?
SECRETÁRIA (eficiente): Derivado do verbo “morrer”, suponho.
POETA: Pronto, achei. “Juros”... não, não presta. “Muros.” (Liricamente) “Povo de França, avante contra os muros!”... Mas o que é que eu estou dizendo? “Futuros.” (Meditabundo.)
... Pois antes que outro surja nos futuros…
(A secretária bate poucas vezes). Não, espere, é só uma tentativa. Nem uma tentativa: é uma idiotice. Por acaso ele vai ressuscitar? Vamos, cancele. Aliás, troque de papel. (Com cólera repentina) Chega! Jogue fora tudo. Já me enchi desse trabalho sujo: eu sou um poeta, um poeta premiado, não um borra-botas. Não sou um menestrel. Vá pro diabo o marquês, o epicédio, o epinício, o lamento, o Sigismundo. Não sou um versificador. Vamos, escreva: “Herdeiros von Ellenbogen, endereço, data etc. Vimos por meio desta falar-vos a respeito da vossa gentil solicitação de um lamento fúnebre, na data tal e tal, a qual vos agradecemos com imenso respeito. Infelizmente, devido a compromissos inesperados e urgentes, vemo-nos obrigados a declinar da encomenda...”.
SECRETÁRIA (interrompendo): Mestre, me perdoe, mas... o senhor não pode recusar a encomenda. Aqui está, nos nossos registros, o recebimento da antecipação... há inclusive uma penalidade, não se lembra?
POETA: É verdade, a multa: estamos feitos. Poesia! Ugh, bela prisão. (Pausa: em seguida, com brusca decisão) Ligue para o sr. Simpson, por favor.
SECRETÁRIA (surpresa e contrariada): Simpson? O agente da NATCA? Aquele das máquinas para escritório?
POETA (brusco): Esse mesmo. Não há outro.
SECRETÁRIA (faz a chamada): O sr. Simpson, por favor?... Sim, espero.
POETA: Diga a ele que venha logo, e com os prospectos do Versificador. Aliás, melhor, me passe a ligação: quero falar pessoalmente.
SECRETÁRIA (sussurrando, de má vontade): Quer comprar aquela máquina?
POETA (sussurrando, mais calmo): Não fique de mau humor, senhorita, nem meta ideias erradas na cabeça. (Persuasivo) Não se pode ficar para trás, é perfeitamente compreensível. Precisamos acompanhar os tempos. Eu também não gosto, lhe garanto, mas a certa altura é necessário tomar uma decisão. De resto, não se preocupe: nunca lhe faltará trabalho. Lembra, três anos atrás, quando compramos a calculadora?
SECRETÁRIA (ao telefone): Sim, senhorita. Por gentileza, pode me passar o sr. Simpson?
(Pausa) Sim, é urgente. Obrigada.
POETA (continuando, com voz baixa): E então, como se sente hoje? Passaria sem ela? Não, não é mesmo? É um instrumento de trabalho como outro qualquer, como o telefone, o mimeógrafo. No nosso trabalho o fator humano é e sempre será indispensável; mas temos concorrentes, e por isso devemos confiar às máquinas os trabalhos mais ingratos, mais cansativos. Justamente as tarefas mais mecânicas…
SECRETÁRIA (ao telefone): Sr. Simpson, é o senhor? Espere um instante, por gentileza. (Ao poeta) O sr. Simpson está na linha.
POETA (ao telefone): Simpson, como vai? Ouça: se lembra daquele anúncio que você me trouxe... espere... no final do ano passado?... (Pausa) Sim, exatamente, o Versificador, aquele modelo para usos civis: você me falou dele com um certo entusiasmo... veja se consegue um para mim. (Pausa) Sei, entendo: mas agora talvez tenha chegado o tempo. (Pausa) Ótimo; sim, é bastante urgente. Dez minutos? Gentileza sua — eu o espero aqui, no meu escritório. Até já. (Coloca o fone no gancho; à secretária) É um homem extraordinário, esse Simpson, um representante de classe, de uma eficiência rara. Sempre à disposição dos clientes, a qualquer hora do dia ou da noite: nem sei como ele consegue. Pena que tenha pouca experiência no nosso ramo, senão…
SECRETÁRIA (hesitante, cada vez mais comovida): Mestre... eu... eu trabalho com o senhor há quinze anos... me perdoe por dizer, mas... em seu lugar eu não faria isso. Não digo por mim, sabe: mas um poeta, um artista como o senhor... como pode resignar-se a pôr em casa uma máquina... moderna, concordo, mas que será sempre uma máquina... como poderá ter o seu gosto, a sua sensibilidade... Estávamos tão bem, nós dois, o senhor ditando e eu escrevendo... e não só escrevendo, todos podem escrever, mas também cuidando dos seus trabalhos como se fossem meus, passando-os a limpo, retocando a pontuação, alguma concordância (confidencial), até uns errinhos de sintaxe, entende? Todos podem se distrair um dia…
POETA: Ah, é claro que eu a entendo. Também para mim é uma escolha dolorosa, cheia de dúvidas. Existe uma alegria no nosso trabalho, uma felicidade profunda, diferente de todas as outras, a felicidade de criar, de tirar do nada, de ver a coisa nascer na nossa frente, aos poucos ou de repente, como por encanto, algo de novo e de vivo que não existia antes... (Subitamente frio) Tome nota, senhorita: “como por encanto, algo de novo e de vivo que não existia antes, pontinhos” — sempre pode servir.
SECRETÁRIA (muito comovida): Já está feito, mestre. Sempre tomo nota, mesmo quando o senhor não me pede. (Chorando) Eu conheço o meu ofício. Vamos ver se aquele outro, aquele coisa, saberá fazer o mesmo!
A campainha toca
POETA: Adiante!
SIMPSON (vivaz e jovial; leve sotaque inglês): Aqui estou: em tempo recorde, não é? Trouxe o anúncio, o informe publicitário e as instruções para o uso e a manutenção. Mas não é só isto; aliás, falta o essencial. (Teatral) Um momento! (Dirigindo-se à porta) Em frente, Giovanni. Traga-o para cá. Cuidado com o degrau. (Ao poeta) Sorte que estamos no térreo! (Ruído de carrinho se aproximando.) Aqui está, para o senhor: o meu exemplar pessoal. Mas no momento não preciso dele: estamos aqui para trabalhar, não é?
GIOVANNI: Onde está a tomada?
POETA: Aqui, atrás da escrivaninha.
SIMPSON (rapidamente): Duzentos e vinte volts, cinqüenta períodos, confere? Perfeito. Aqui está a tomada. Cuidado, Giovanni: sim, ali no tapete ficará ótimo, mas ele pode ser colocado em qualquer canto; não vibra, não esquenta e não faz mais barulho que uma lavadora. (Dá um tapinha no tampo.) Bela máquina, sólida. Projetada sem economia. (A Giovanni) Obrigado, Giovanni, pode ir. Aqui está a chave, pegue o carro e volte para o escritório; ficarei aqui a tarde toda. Se alguém me procurar, ligue para cá. (Ao poeta) O senhor permite, não é mesmo?
POETA (com um certo constrangimento): Sim, claro. Você... fez bem em trazer o aparelho: eu não teria ousado incomodá-lo tanto. Eu é que devia ter ido. Mas... ainda não estou decidido a comprar; você me entende, eu queria antes de tudo ter uma ideia concreta da máquina, de como funciona, e também... saber quanto custa.
SIMPSON (interrompe): Sem compromisso, sem compromisso, claro! Sem o mínimo compromisso de sua parte. Uma demonstração gratuita, em nome da amizade: a gente se conhece há tanto tempo, não? Além disso, não esqueço certos serviços que o senhor nos prestou, aquele slogan para a nossa primeira calculadora eletrônica, a Lightning, se lembra?
POETA (lisonjeado): Mas claro! Se não há cálculo o bastante, Se a razão não nos contenta
esta máquina compensa.
SIMPSON: Sim, esse mesmo. Há quanto tempo! O senhor teve toda a razão em cobrar caro: nos rendeu dez vezes mais do que custou. O que é justo é justo: as ideias se pagam. (Pausa: barulho crescente do Versificador, que está esquentando...) Pronto, está esquentando. Em poucos minutos, quando essa lampadinha se acender, poderemos começar. Enquanto isso, se me permite, direi algumas coisas sobre o funcionamento.
Primeiramente, que fique bem claro: isso não é um poeta. Se o senhor está buscando um autêntico poeta mecânico, deverá esperar ainda alguns meses: o protótipo já está em fase adiantada de testes em nossa matriz, em Fort Kiddiwanee, Oklahoma. Será batizado de The Troubadour, “o trovador”, uma máquina fantástica, um poeta mecânico heavy-duty, capaz de compor em todas as línguas européias vivas ou mortas, capaz de poetar ininterruptamente durante mil laudas, de –100° a +200° Celsius, em qualquer clima e até debaixo d’água e no vácuo. (Em voz baixa) Seu uso está previsto no projeto Apollo: será o primeiro a cantar as solidões lunares.
POETA: Não, não creio que me interessará: é muito complicado e, de resto, eu raramente trabalho em viagem. Estou quase sempre aqui, no escritório.
SIMPSON: Certo, certo. Só lhe disse a título de curiosidade. Veja, isto aqui é apenas um Versificador e, como tal, dispõe de menos liberdade: tem menos fantasia, digamos. Mas é o suficiente para trabalhos de rotina, e além disso, com um pouco de exercício da parte do operador, é capaz de verdadeiros prodígios. Aqui está a fita, está vendo? Normalmente a máquina pronuncia as suas composições e simultaneamente as transcreve.
POETA: Como um teletipo?
SIMPSON: Exatamente. Mas, se for necessário — por exemplo, em casos de urgência —, é possível desinstalar a voz, o que torna a composição muito mais rápida. Este é o teclado: é semelhante aos dos órgãos e das linotipos. Aqui no alto (aciona) se coloca o assunto: três a quatro palavras já bastam. Estas teclas pretas são os registros: determinam o tom, o estilo e o “gênero literário”, como se dizia antigamente. Finalmente, estas outras teclas definem a forma métrica. (À secretária) Aproxime-se, senhorita, é melhor que também acompanhe os procedimentos. Imagino que a operação da máquina ficará a seu cargo, não?
SECRETÁRIA: Não vou aprender nunca. É muito difícil.
SIMPSON: É verdade, todas as máquinas novas dão essa impressão. Mas é só uma impressão, lhe garanto: daqui a um mês a senhorita a usará como se guia um carro, pensando noutras coisas, talvez cantando.
SECRETÁRIA: Eu nunca canto quando estou no trabalho. (Toca o telefone.) Alô? Sim (Pausa). Sim, é aqui. Já passo a ele. (A Simpson) Sr. Simpson, é para o senhor.
SIMPSON: Obrigado. (Ao telefone) Sou eu, sim. (Pausa) Ah, é o senhor, engenheiro? (Pausa) Como, está travando? Superaquecimento? Realmente é desagradável. Nunca vi um caso desses. Checou o painel de controle? (Pausa) Sim, não toque em nada, o senhor tem razão: mas todos os meus técnicos estão fora, é uma pena. Não pode esperar até amanhã? (Pausa) Claro, eu entendo. (Pausa) Sim, está na garantia, mas mesmo que não estivesse... (Pausa) Olhe, estou aqui perto; pego um táxi e em um minuto estarei aí. (Desliga e diz ao poeta, nervoso e apressado) Me perdoe, tenho que sair.
POETA: Espero que não seja nada grave.
SIMPSON: Oh, não é nada: uma calculadora, uma bobagem; mas, o senhor sabe, o cliente tem sempre razão. (Suspira) Mesmo quando é um chato e nos faz viajar dez vezes para nada. Olhe, vamos fazer o seguinte: eu deixo o aparelho com o senhor, pode usá-lo à vontade. Dê uma olhada nas instruções e experimente, divirta-se.
POETA: E se eu o danificar?
SIMPSON: Não tenha medo. É muito resistente, foolproof, diz o folheto americano: “à prova de tolos”... (embaraçado: se deu conta da gafe) sem ofensas, o senhor me entende. Há inclusive um mecanismo de bloqueio nos casos de mau uso. Mas o senhor verá como é fácil. Estarei de volta daqui a uma hora ou duas: até já. (Sai.)
Leia na íntegra esse conto de Levi Primo acessando aqui.

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