quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Cabo Martim

Estava ele exercendo suas habilidades na feira de Água dos Meninos, ao baralho. Ao fazê-lo com tanta simplicidade, concorria para a alegria espiritual de alguns choferes de marinete e caminhão, colaborava na educação de dois molecotes que iniciavam seu aprendizado prático da vida e ajudavam uns quantos feirantes a gastar os lucros obtidos nas vendas do dia. Realizava assim obra das mais louváveis. Não se explica, por consequência, que um dos feirantes não parecesse entusiasta de seu virtuosismo ao bancar, rosnando entre dentes que tanta sorte fedia a bandalheira. Cabo Martim levantou para o apressado crítico seus olhos de azul inocência, ofereceu-lhe o baralho para que ele bancasse, se quisesse e para tanto possuísse a necessária competência. Quanto a ele, cabo Martim, preferia apostar contra a banca, quebrá-la rapidamente, reduzir o banqueiro à mais negra miséria. E não admitia insinuações sobre sua honestidade. Como antigo militar, era particularmente sensível a qualquer murmúrio que envolvesse dúvidas sobre sua honradez. Tão sensível que a uma nova provocação seria obrigado a quebrar a cara de alguém. Cresceu o entusiasmo dos rapazolas, os choferes esfregaram as mãos, excitados. Nada mais deleitável do que uma boa briga, assim gratuita e inesperada. Nesse momento, quando tudo podia se passar, surgiram Curió e Negro Pastinha carregando a notícia trágica e a garrafa de cachaça com um restinho no fundo. Ainda de longe gritaram para o Cabo:
Morreu! Morreu!
Cabo Martim fitou-os com olho competente, demorando-se na garrafa em cálculos precisos, comentou para a roda:
Aconteceu alguma coisa importante para eles já terem bebido uma garrafa. Ou bem Negro Pastinha ganhou no bicho ou Curió ficou noivo.
Porque sendo Curió um incurável romântico, noivava frequentemente, vítima de paixões fulminantes. Cada noivado era devidamente comemorado, com alegria ao iniciar-se, com tristeza e filosofia ao encerrar-se, pouco tempo depois.
Alguém morreu... – disse um chofer.
Cabo Martim estende o ouvido.
Morreu! Morreu!
Vinham os dois curvados ao peso da notícia. Das Sete Portas à Água dos Meninos, passando pela rampa dos saveiros e pela casa de Carmela, haviam dado a triste nova a muita gente. Por que cada um, ao saber do passamento de Quincas, logo destampava uma garrafa?
Não era culpa deles, arautos da dor e do luto, se havia tanta gente pelo caminho, se Quincas tinha tantos conhecidos e amigos.
Naquele dia começou-se a beber na cidade da Bahia muito antes da hora habitual. Não era para menos, não é todos os dias que morre um Quincas Berro Dágua.
Cabo Martim, esquecido da briga, o baralho suspenso na mão, observava-os cada vez mais curioso. Estavam chorando, já não tinha dúvidas. A voz do Negro Pastinha chegava estrangulada:
Morreu o pai da gente...
Jesus Cristo ou o governador? – perguntou um dos molecotes com vocação de piadista. A mão do negro o suspendeu no ar, atirou-o no chão. Todos compreenderam que o assunto era sério, Curió levantou a garrafa, disse:
Berro Dágua morreu!
Caiu o baralho da mão de Martim. O feirante malicioso viu confirmarem-se suas piores suspeitas: ases e damas, cartas do banqueiro, espalharam-se em quantidade. Mas também até ele chegara o nome de Quincas, resolveu não discutir. Cabo Martim requisitava a garrafa de Curió, acabou de esvaziá-la, atirou-a fora com desprezo. Olhou longamente a feira, os caminhões e marinetes na rua, as canoas no mar, a gente indo e vindo. Teve a sensação de um vazio súbito, não ouvia sequer os pássaros nas gaiolas próximas, na barraca de um feirante. Não era homem de chorar, um militar não chora mesmo após ter deixado a farda. Mas seus olhos ficaram miúdos, sua voz mudou, perdeu toda a fanfarronada. Era quase uma voz de criança ao perguntar:
Como pôde acontecer?
Juntou-se aos outros, após recolher o baralho, faltava ainda encontrar Pé-de-Vento. Esse não tinha pouso certo, a não ser às quintas e domingos à tarde, quando invariavelmente brincava na roda de capoeira de Valdemar, na estrada da Liberdade. Fora isso, sua profissão levava-o a distantes lugares. Caçava ratos e sapos para vendê-los aos laboratórios de exames médicos e experiências científicas – o que tornava Pé-de-Vento figura admirada, opinião das mais acatadas. Não era ele um pouco cientista, não conversava com doutores, não sabia palavras difíceis?
Só após muito caminho e vários tragos, deram com ele, embrulhado em seu vasto paletó, como se sentisse frio, resmungando sozinho. Soubera da notícia por outras vias e também ele buscava os amigos. Ao encontrá-los, meteu a mão num dos bolsos. Para retirar um lenço com que enxugar as lágrimas, pensou Curió. Mas das profundezas do bolso Pé-de-Vento extraiu pequena jia verde, polida esmeralda.
Tinha guardado para Quincas, nunca encontrei uma tão bonita.
Jorge Amado, in A morte de Quincas Berro Dágua

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