quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Bestiário

O meu imaginário está cheio de animais. Pássaros, gatos, ratos, galos, águias, onças, elefantes, sapos, porcos, lobos, dinossauros, cobras, patos, gansos: já escrevi estórias sobre todos eles. Sinto um enorme carinho pelas coisas vivas e me espanto diante delas. Por vezes, lá em Pocinhos do Rio Verde, fico parado diante da parede da casa, a admirar as mariposas que nela pousaram, atraídas pela luz. Suas asas são assombros estéticos. Depois de admirar, fico a pensar no mistério da vida. Como é possível? De que fundura de mistério surge tanta beleza? Gosto dos patos. Novinhos, acabados de sair do ovo, amarelinhos, fofos, sem que ninguém lhes tenha ensinado, já sabem nadar. Mesmo que tenham sido chocados por uma galinha. E como é tranquilizante vê-los deslizando calmos sobre as águas de um lago. Vai aí um conselho terapêutico para a tranquilidade: ficar a ver os patos a nadar por meia hora. Faz bem para a cabeça. Sobre eles escrevi a estória O patinho que não aprendeu a voar. Uma livreira me contou que um pai, indignado, devolveu o livro que havia comprado sob a alegação de que o seu filho, ao final da estória, se pôs a chorar. Ele achava que livros para crianças devem sempre terminar em riso. Mas, que posso fazer? Escrevi a estória pra fazer chorar. Parte da educação é mostrar às crianças que a vida se faz também com o choro. Está dito nas Sagradas Escrituras: “Os que com lágrimas semeiam com alegria ceifarão”. Escrevi outra sobre gansos, animais que conheci lendo as estórias de Andersen. Por isso tratei de povoar meu lugarzinho em Pocinhos do Rio Verde, o sítio Mar de Minas, com patos e gansos. Lá eles podiam viver tranquilos, sob a minha proteção. Eu jamais mataria um deles para fazer um assado. Não troco a alegria permanente de vê-los pelo prazer glutão de comê-los que termina em poucos minutos. Cada um tem sua própria dignidade. Os gansos são arrogantes, têm consciência da sua importância, andam sempre com o nariz empinado, assoprando. Os patos, desajeitados no andar, são garças ao voar. Sobem até o alto do morro e, de lá, voam brancos numa curva para descer no lago. Sim, lá eles estão seguros. Morrerão de velhice.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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