Os
pardais o acordavam de manhã. “Malditos!” gemia, enterrando a
cabeça no travesseiro. Malditos pardais eram o dia: mais um dia. Não
se mexia, mordendo o lençol para não gritar: “Não acordei, estou
dormindo. Não são os pardais, mas os grilos...” Seria doce
assassinar todos os pardais da cidade.
Cabeça
nas mãos, repete sem cessar — “São os grilos, eis que são os
grilos”. Para se vestir, em vez de abrir a janela, acendia a luz.
Onde
a coragem de afrontar o espelho? Sobrevivera ao pior: já fazia a
barba. Não mais avistar aquela cara e, cocando o queixo,
interrogar-se: “Para quê?” O espelho nunca deu a resposta.
Resistia aos dias, com ódio dos pardais. Ah, não pipilassem com
tanta alegria, quem sabe o sol deixasse de nascer.
Ensaboava
o queixo, a injuriar-se em voz baixa: “Por que não morre?” Ao
frio da navalha, os dedos tremiam. Alcançava a garrafa, bebia no
gargalo. Dos olhos escorriam gotas de amargura, nem eram lágrimas.
O
retratinho da filha no canto do espelho, única maneira de suportar o
próprio rosto.
Assim
que terminava de se barbear vinha-lhe a tentação, nunca antes. De
cara limpa, se alguém trouxesse Mariinha para vê-lo... Não
sacudisse tanto a mão, abandonava a navalha sobre a pia — menor
que fosse o corte uma sangueira no pescoço.
Havia
meses, não sabia quantos, depois de uma discussão com a mulher,
escondeu-se naquele hotel. Dia seguinte viria suplicar que
voltasse... Não viera e, em vez, mandou-lhe a roupa.
Ali
estava e não transferia camisa e cueca para a gaveta. Não abria a
janela, nem esvaziava a mala.
Saía
para o emprego, dele para os bares. O último a deixar o escritório,
só, debruçado na mesa, a nuca arrepiava-se com as patinhas de uma
aranha: o olhar de ódio da mulher.
Primeiros
dias consultava a todo instante o relógio. Até que se lembrava: não
tinha mais pressa. Relógio parou, não lhe deu corda, embora o
prendesse cada manhã ao pulso — nada que fazer, nenhuma casa aonde
ir. Esgueirava-se à sombra das árvores na direção do bar mais
próximo. Tudo parecia bem, enquanto não se interrogasse: “Que
estou fazendo aqui? Onde a minha casa, Senhor? Que é de minha
filha?” Agarrava-se aos amigos, todos tinham sua hora de ir.
Para
todos havia uma casa a que voltar.
Para
ele o quarto de hotel, elevador a despenhar-se no fundo do poço.
Discutia com os parceiros até que mudavam de bar. Sem entender,
apegava-se: a um e outro. Não o deixassem só.
Não
ficasse só, não teria de pensar.
Bebia,
e por mais que bebesse, não era menor a aflição. Nunca chegou a
ler o jornal sobre a mesa, o mundo deixara de interessá-lo. Moscas
pousavam-lhe na mão, sem que as incomodasse. Fixava o retrato de
Mariinha, já não podia chorar. Com muito-esforço, os olhos mal se
umedeciam — nem uma gota chegava a pingar. Carregava no bolso um
sapatinho de tricô e, na hora do maior desespero, estreitava-o na
mão. Assim que se salvou dos dias e da pena de si mesmo.
Conversava
pelo telefone com a filha, às vezes a mulher atendia: nem uma
palavra, um reconhecia o silêncio do outro. A ama trazia-lhe a filha
na praça. Abraçava-se com Mariinha, e assustando-a, molhava-lhe os
cabelos de lágrimas. “Lágrimas de bêbado...” — diria a
mulher.
Seguira-a
uma tarde na rua (mais bonita, dona separada gosta de se enfeitar),
não pôde se aproximar: dar-lhe a mão seria afagar um sapo. Já
trabalhava o espírito de Mariinha contra ele, pai ingrato, desertara
a casa... Perdido no banco de praça e, ao voltar-se para a menina,
estava-o adorando, entre duas lambidas no pirulito “Cachacinha, não
é, pai?” — olhos fechados, não sabia piscar um só — “De
brinquedo, não é paizinho?”
Noite
velha, rondando a casa, namorava a janela do seu quarto. Certa vez
iluminada... a filha doente? A mãe, implacável, deixava-a chorar.
Não consentia que dormisse de luz acesa, o anjinho tinha medo da
escuridão. Vingava-se dele na filha... No retrato, em que sorri, a
expressão triste da órfã e, quando uma colega pergunta na escola —
“Não tem pai, guria?”, aquela cara para não chorar.
Seu
caminho do hotel ao emprego, dele ao primeiro bar, desse a outro bar,
até que todos os bares se fechassem — estava só. Nunca mais se
embriagou, a bebida o poupava para sorte pior.
Desde
que perdeu o sono, fugia de se recolher. Por mais que bebesse, assim
que voltava para o quarto e estendia-se na cama, os olhos se
recusavam a dormir (o sono vinha de repente no bar e cochilava
sentado, a cabeça na mesa). Ouvia o elevador, chinelos em direção
ao banheiro.
Tosse
da gorducha do 42, pigarro do velho do 49, estrondo das portas. Na
penumbra a mala sobre a cadeira. Gavetas do camiseiro vazias.
Trocando de roupa, abria e fechava a mala, ainda de viagem. Guardasse
as camisas na gaveta, abandonada a última esperança.
Se
adormecia, era pior: o elevador. Ao entrar, apertado entre os
hóspedes. Cada um dizia o andar e a gaiola, em vez de subir,
punha-se a descer. Afrouxava o colarinho, o elevador não tinha
respiradouro. Ficara só, os outros haviam saltado, sem que
percebesse. Inútil o botão vermelho de alarma, a jaula não parava,
baixando ao fundo negro do poço...
Acordava,
a ouvir não o seu grito, mas o de Mariinha: "Pai! Paizinho!"
De pé, no meio do quarto, o tapete de letras verdes — Lux Hotel.
Batia a cabeça na parede: a hora em que se levantava para cobrir a
filha ou dar-lhe a chupeta que, olhinho fechado, tateava sem
encontrar.
Acendia
a lâmpada: se a menina ao longe despertasse, eis uma luzinha no
mundo...
Renuncia
a dormir, desde que Mariinha dormisse. Olhos abertos para não sonhar
com o ascensor. Despedia-se do retratinho e, posto não tivesse fé,
rezava para que morresse aquela noite, nunca mais ouvisse os pardais.
Repetia uma frase como dente mole na gengiva: “Ilha é uma porção
de terra cercada ...” Ao menos ficasse louco — as palavras
substituídas por outras, repisadas dezenas de vezes: “Ora, direis,
ouvir estrelas. Ora, direis, ouvir estrelas...”
A
cambalear pelas ruas, arrastava os pés, tão cansado. Sob a chuva
não interrompia a marcha, nem apressava o passo. Voltava ao hotel,
sabendo o que o esperava. Encostava a cabeça no travesseiro,
percebia o rangido da gaiola. Algum hóspede que chegou depois,
caixeiro-viajante por certo... Em vão se iludia: o elevador viajava
sozinho. Que estranhos passageiros transportava à noite, quando
todos dormiam? Nem bem fechava os olhos, ouvia os pardais. Depressa
repetia que não eram os pardais, mas os grilos. Não eram os
pardais, mas os grilos.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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