No
fim da tarde, quando as luzes se acendiam na cidade e os homens
abandonavam o trabalho, os quatro amigos mais íntimos de Quincas
Berro Dágua – Curió, Negro Pastinha, cabo Martim e Pé-de-Vento –
desciam a ladeira do Tabuão em caminho do quarto do morto. Deve-se
dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbedos. Haviam
tomado seus tragos, sem dúvida, na comoção da notícia, mas o
vermelho dos olhos era devido às lágrimas derramadas, à dor sem
medidas, e o mesmo pode-se afirmar da voz embargada e do passo
vacilante. Como conservar-se completamente lúcido quando morre um
amigo de tantos anos, o melhor dos companheiros, o mais completo
vagabundo da Bahia?
Quanto
à garrafa que o cabo Martim teria escondido sob a camisa, nada ficou
jamais provado. Naquela hora do crepúsculo, do misterioso começo da
noite, o morto parecia um tanto quanto cansado. Vanda dava-se conta.
Não era para menos: passara ele a tarde a rir, a murmurar nomes
feios, a fazer-lhe caretas. Nem mesmo quando chegaram Leonardo e o
tio Eduardo, por volta das cinco horas, nem mesmo então Quincas
repousou. Insultava Leonardo, paspalhão!, ria de Eduardo.
Mas, quando as sombras do crepúsculo desceram sobre a cidade,
Quincas tornou-se inquieto. Como se esperasse alguma coisa que
tardava a vir. Vanda, para esquecer e iludir-se, conversava
animadamente com o marido e os tios, evitando fitar o morto. Seu
desejo era voltar para casa, descansar, tomar um comprimido que a
ajudasse a dormir. Por que seria que os olhos de Quincas ora se
voltavam para a janela, ora para a porta?
A
notícia não alcançara os quatro amigos ao mesmo tempo. O primeiro
a saber foi Curió. Empregava ele seus múltiplos talentos na
propaganda de lojas da Baixa dos Sapateiros. Vestido com um velho
fraque surrado, a cara pintada, postava-se na porta de uma loja,
contra mísero pagamento, a louvar-lhe a barateza e as virtudes, a
parar os passantes dizendo-lhes graçolas, convidando-os a entrar,
quase arrastando-os à força. De quando em vez, quando a sede
apertava – emprego danado para secar a garganta e o peito –, dava
um pulo num botequim próximo, tomava um trago para temperar a voz.
Numa dessas idas e vindas a notícia o alcançou, brutal como um soco
no peito, deixou-o mudo. Voltou cabisbaixo, entrou na loja, avisou o
sírio que não contasse mais com ele naquela tarde. Curió era ainda
moço, alegrias e tristezas afetavam-no profundamente. Não podia
suportar sozinho o choque terrível. Precisava da companhia dos
outros íntimos, da turma habitual.
A
roda, em frente à rampa dos saveiros, na feira noturna de Água dos
Meninos aos sábados, nas Sete Portas, nas exibições de capoeira na
estrada da Liberdade, era quase sempre numerosa: marítimos, pequenos
comerciantes do Mercado, babalaôs, capoeiristas, malandros
participavam das longas conversas, das aventuras, das movimentadas
partidas de baralho, das pescarias sob a lua, das farras na zona.
Numerosos admiradores e amigos possuía Quincas Berro Dágua, mas
aqueles quatro eram os inseparáveis. Durante anos e anos haviam-se
encontrado todos os dias, haviam estado juntos todas as noites, com
ou sem dinheiro, fartos de bem comer ou morrendo de fome, dividindo a
bebida, juntos na alegria e na tristeza. Curió somente agora
percebia como eram ligados entre si, a morte de Quincas parecia-lhe
uma amputação, como se lhe houvessem roubado um braço, uma perna,
como se lhe tivessem arrancado um olho. Aquele olho do coração do
qual falava a mãe-de-santo Senhora, dona de toda a sabedoria.
Juntos, pensou Curió, deviam chegar ante o corpo de Quincas. Saiu em
busca do Negro Pastinha, àquela hora certamente no largo das Sete
Portas, ajudando bicheiros conhecidos, arranjando uns cobres para a
cachaça da noite. Negro Pastinha media quase dois metros, quando
estufava o peito semelhava num monumento, tão grande e forte era.
Ninguém podia com o negro quando lhe dava a raiva. Felizmente coisa
difícil de acontecer, pois Negro Pastinha era de natural alegre e
bonachão. Encontrou-o no largo das Sete Portas, como calculara. Lá
estava ele, sentado na calçada do pequeno mercado, debulhado em
lágrimas, segurando uma garrafa quase vazia. Ao seu lado, solidários
na dor e na cachaça, vagabundos diversos faziam coro às suas
lamentações e suspiros. Já tivera conhecimento da notícia,
compreendeu Curió ao ver a cena. Negro Pastinha virava um trago,
enxugava uma lágrima, urrava em desespero:
–
Morreu o pai da gente...
–
...pai da gente... – gemiam os outros.
Circulava
a garrafa consoladora, cresciam lágrimas nos olhos do negro, crescia
seu agudo sofrer:
–
Morreu o homem bom...
–
...homem bom...
De
quando em quando, um novo elemento incorporava-se à roda, por vezes
sem saber do que se tratava. Negro Pastinha estendia-lhe a garrafa,
soltava seu grito de apunhalado: – Ele era bom...
–
...era bom... – repetiam os demais,
menos o novato, à espera de uma explicação para os tristes
lamentos e a cachaça grátis.
– Fala
também, desgraçado... – Negro Pastinha, sem se levantar,
espichava o poderoso braço, sacudia o recém-chegado, um brilho mau
nos olhos. – Ou tu acha que ele era ruim?
Alguém
se apressava a explicar, antes que as coisas se tornassem malparadas.
– Foi Quincas Berro Dágua que morreu.
–
Quincas?... era bom... – dizia o novo
membro do coro, convicto e aterrorizado.
– Outra
garrafa! – reclamava, entre soluços, Negro Pastinha. Um molecote
levantava-se ágil, dirigia-se à venda vizinha:
–
Pastinha quer outra garrafa.
A
morte de Quincas aumentava, onde ia chegando, a consumação de
cachaça. De longe, Curió observava a cena. A notícia andara mais
depressa que ele. Também o negro o viu, soltou um urro espantoso,
estendeu os braços para o céu, levantou-se:
–
Curió, irmãozinho, morreu o pai da
gente.
– ...o
pai da gente... – repetiu o coro.
– Cala
a boca, pestes. Deixa eu abraçar irmãozinho Curió.
Cumpriam-se
os ritos de gentileza do povo da Bahia, o mais pobre e o mais
civilizado. Calaram-se as bocas. As abas do fraque de Curió
elevavam-se ao vento, sobre sua cara pintada começaram a correr as
lágrimas. Três vezes abraçaram-se, ele e Negro Pastinha,
confundindo seus soluços. Curió tomou da nova garrafa, buscou nela
a consolação. Negro Pastinha não encontrava consolação:
–
Acabou a luz da noite...
– ...a
luz da noite...
Curió
propôs:
– Vamos
buscar os outros para ir visitar ele.
Cabo
Martim podia estar em três ou quatro lugares. Ou dormindo em casa de
Carmela, cansado ainda da noite da véspera, ou conversando na rampa
do Mercado, ou jogando na feira de Água dos Meninos. Só a essas
três ocupações dedicava-se Martim desde que dera baixa do
Exército, uns quinze anos antes: o amor, a conversação, o jogo.
Jamais tivera outro ofício conhecido, as mulheres e os tolos
davam-lhe o suficiente com que viver. Trabalhar depois de ter
envergado a farda gloriosa parecia a cabo Martim uma evidente
humilhação. Sua altivez de mulato boa-pinta e a agilidade de suas
mãos no baralho faziam-no respeitado. Sem falar em sua capacidade ao
violão.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
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