sexta-feira, 8 de julho de 2016

O bebedor do tempo

Naquela tarde eu me sentei na esplanada, cobrando sossego para minha alma privada. Em pausa de viagem, aguardava meu regresso à capital. Naquela transitória vila, fazia muito Norte e o calor apertava. A gente se desmoçava só de tocar a atmosfera. Eu, em verdade, me arfixiava. Por isso, escolhi assento fora, na esperança de um fresco. O bar se chamava A Brisa do Inferno e merecia o título. Ali fiquei, me entretendo a ver passar as moças, dessas mais ligeiras que as libelinhas que fazem amor no ar. Até que vi um homem escuro, barulhando, algumas mesas adiante. Sem aparência de razão, o tipo esbracejava no ar, convocando suores e atenções. Perguntei o que ele fazia mas me ordenaram respeitoso silêncio:
Cale-se! Esse é Xidakwa. Ele está a abraçar Deus!
Quem é vivo sempre desaparece. Xidakwa? O homem era de meu lugar-natal, bêbado de carreira, criatura de vasto e molhado currículo. O que fazia ele tão distante da sua original cidade? Me aproximei na vã esperança de ser reconhecido. Recruzaram em seus olhos muitas névoas. Por fim, endireitou uma frase:
Eu, me desculpe, me esqueci o meu nome.
E virando-se para a multidão solicitou:
Alguém me chama, por favor...
A vida é água endurecendo a pedra. Afinal, requer-se fartura de coração. Eu ajudei o embriagado a reganhar assento. E lhe enchi o copo com o que restava de minha garrafa. Se recordava de nosso comum bairro, lá no antigamente? Ele declarou, apontando a cervejaria:
Aqui, neste bar, é que é a minha pátria!
E ali ficou, toda a manhã. Consecutivo, o homem dava deferimento às garrafas. No fim do dia, o dono da cervejaria me contou. Que numa distante data o meu conterrâneo chegara e se alojara ali, hereditário e definitivo. Lhe pediam contas e Xidakwa se explicava, em despropósito:
Estou à espera de uma certa mulher, é uma que não cabe neste mundo.
Mas bebendo assim?, se atreviam querer saber.
O que estou bebendo não é cerveja. Estou bebendo é o tempo, a ver se ela não demora tanto...
Ao princípio, o dono da cervejaria ainda protestou. Mas depois resolveu recolher vantagem do assunto. O bêbado ajudava a espalhar falagens nas redondezas. Sua presença chamava nova clientela. E, afinal, sempre a linha do tempo traz um anzol de futuro: acabaria por chegar alguém, parente ou amigo, que pagaria a longa despesa do bebedor.
De fato, um dia, vieram a mulher, os filhos, e muito-muito, um cunhado de Xidakwa. Pediram, rogaram, imploraram. Ele que voltasse a casa, seu devido lugar. Eles lhe tratariam com extensas felicidades. Debalde. Cismandão, o homem respondeu uma única vez:
Vos conheço, vocês são desses: olham o leão e logo pensam na jaula.
A família, pesarosa, deixou de lhe aplicar esperança. Antes de partirem, o dono ainda falou com o cunhado. Quem iria pagar passadas e futuras despesas? O cunhado lavava as mãos, pulseiras e anéis. O cervejeiro decidiu por expulsar o embriagado. Deixou que ele dormisse naquela última noite, fim do prazo para sua complaciência.
Mas sucedeu o imprevisto, não fosse sempre no Sul que tropeçassem a lógica e a estatística. Nessa mesma noite, na vila entraram os pistoleiros, em exercício de vandalismo armado. Os habitantes, sem exceção, procuraram o mato. Deixavam tudo, bens e haveres. A vila ficou deserta. Apenas Xidakwa persistia, em alheia e distante neblina. Os facínoras cercaram o bar, prontos a afiar a faca nas costelas do incauto ébrio. Quando sentiu sombras se avizinhando, Xidakwa empunhou a garrafa, gesto em riste. Queria ofertar sua simpatia, boa-vindar os recém-chegados. Mas entre os assaltantes uma voz fez soltar o aviso:
O tipo está armado!
E cruzaram-se mortais disparos. Um bandido tombou, imediato, buraco acrescentado no alvo de sua testa. Os restantes malfazentes panicaram, em desarranjada fuga. Na manhã seguinte, o povo empossou Xidakwa, o camarada Xidakwa, como herói bravio, dono de intrepiduras. Mais que isso: lhe alcunharam de bebedor santificado. E correu a versão que ele adivinhava os futuros, sabia o insabível. E ali começaram a vir pedir conselhos e receitas. O homem recebia os afligidos, mandava vir mais cerveja. Seu olhar rodopiava dentro das órbitas, incapaz de soletrar uma visão. Sempre declarava a mesma e igual sentença, tonteando palavras:
A partir de hoje...
E mais não dizia. Caía na cadeira, redondo que nem um planeta. Seu vaticínio não era senão a vertigem de um silêncio. O povo, mesmo assim, lhe cobria de fé. O que faltava em suas palavras a boa gente preenchia com sabedorias imputadas. Os deuses, afinal, dispensam as explicadas palavras.
Mas o homem, se via, há muito se apeara de sua alma. Emagrecia, a molhos vistos. Definhava. Já nem bebia. Encomendava uma garrafa e ficava a olhar, contemplinativo. O bebedor adoecia, o fígado desentendido com as vísceras. Veio o médico português, em visita de raspão. O lusitano doutorou: que a vida de Xidakwa estava por uma espuma, restavam-lhe uns quantos dias.
Isso me contou o cervejeiro, na esquina da noite. Na manhã seguinte, acordei com outro sentimento por Xidakwa, como quem partilha a véspera do condenado. Fui à cervejaria disposto a despender com ele urgentes memórias. Junto com ele, queria aprender a beber o tempo, cada gole uma idade. E fui ao bar, procurei fora e dentro. Mas Xidakwa não vi, em nenhum assento ele estava.
Não conhece o sucedido?
E o dono me relatou isso que todos tinham visto. Eram às tantas da noite quando passou por ali uma forasteira, vinda nem se sabe de quem nem de onde. Dizem, duvide-se: ela era da cor do milho, amarelosa. O certo e testemunhado é que a dama se assentou na mesa de Xidakwa. E ele, em trémula ternura, lhe pediu uma demora, era só mais aquele, o último copo. A mulher sorriu. Depois, pegou as mãos do bebedor e, lenta e impossivelmente, foi levando o Xidakwa para dentro do copo. Façam-se contas aos tamanhos, é coisa de se descrer: o homem que se insulara em distante cervejaria, emigrava agora, em líquida eternidade, para dentro da cerveja.
Me sentei, atravessado por não sei qual sentimento. Pedi cerveja, garrafa atrás de garrafa. E fiquei bebendo, lento, sentindo em cada gole o vagaroso paladar do tempo. A meio da tarde me vieram alertar que o comboio do meu regresso estava já soando os últimos apitos. Lancei um vago gesto, a desentender. Chegada a noite, o dono me veio avisar que chegara a hora de fechar. Respondi que ficava, me sentia ali em aconchego de pátria:
Sim, eu estou esperando alguém…
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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