segunda-feira, 25 de julho de 2016

Em busca de meu tio John

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Foi num outro domingo que saímos no Modelo-T em busca do meu tio John.
Ele não tem ambição – disse meu pai. – Não sei como ele consegue manter aquela maldita cabeça erguida e olhar as pessoas nos olhos.
Espero que ele não esteja mascando tabaco – disse minha mãe. – Ele cospe aquela porcaria para todos os lados.
Se o país estivesse cheio de homens como ele, os chinas estariam no poder, e nós, tocando as lavanderias...
John nunca teve uma chance. Ele saiu de casa cedo. Pelo menos você conseguiu cursar o ensino médio – ela disse.
Faculdade.
Onde? – ela perguntou.
Na Universidade de Indiana.
Jack me disse que você só tinha feito o ensino médio.
Foi Jack quem só fez o ensino médio. É por isso que ele cuida dos jardins dos ricos.
Será que um dia vou ver o meu tio Jack? – perguntei.
Primeiro vamos ver se encontramos o seu tio Jack – respondeu meu pai.
Os chinas realmente querem assumir o controle do país? – perguntei.
Aqueles diabos amarelos esperam há séculos pela oportunidade. O que os impediu até agora foi o fato de estarem sempre ocupados lutando com os japas.
Quem são os melhores combatentes, os chinas ou os japas?
Os japas. O problema é que há muitos chinas. Quando você mata um, ele se divide ao meio e vira dois.
Como a pele deles ficou amarela?
Porque em vez de beberem água eles bebem o próprio xixi.
Paizinho, não diga isso ao garoto!
Então diga para ele parar de me fazer perguntas.
Seguimos em movimento, cortando o caloroso dia de Los Angeles. Minha mãe vestia um de seus bonitos vestidos e um chapéu vistoso. Quando ela estava bem vestida, sempre se sentava bastante empertigada, mantendo o pescoço extremamente rijo.
Gostaria que tivéssemos bastante dinheiro. Assim poderíamos ajudar John e sua família – disse minha mãe.
Não é minha culpa se eles não têm sequer um penico para mijar – respondeu meu pai.
Paizinho, John esteve na guerra assim como você. Não acha que ele merece alguma coisa?
Ele nunca foi promovido. Eu me tornei primeiro-sargento.
Henry, seus irmãos não podem ser iguais a você.
Eles não têm a mínima força de vontade! Acham que podem viver nas nuvens!
Seguimos um pouco mais adiante. Tio John e sua família viviam num pequeno casebre. Desembarcamos e percorremos uma calçada esburacada até uma varanda irregular, e meu pai tocou a campainha. Não se ouviu nenhum som. Ele bateu na porta, com força.
Abram! São os tiras! – gritou meu pai.
Paizinho, não faça assim! – disse minha mãe.
Depois do que pareceu uma longa espera, a porta se entreabriu. Depois um pouco mais. E pudemos ver então minha tia Anna. Ela estava muito magra; suas faces, chupadas, e seus olhos tinham olheiras, olheiras profundas. A voz também lhe saiu magrinha:
Oh, Henry... Katherine... entrem, por favor...
Nós a seguimos. Havia pouquíssimos móveis. Havia uma mesa de canto com quatro cadeiras para o café-da-manhã e mais duas camas. Minha mãe e meu pai se sentaram nas cadeiras. Duas garotas, Katherine e Betsy (só soube o nome delas mais tarde), estavam junto à pia, revezando-se na tentativa de extrair os últimos resquícios de manteiga de amendoim de um pote.
Estávamos almoçando – disse minha tia Anna.
As garotas se aproximaram com as rapas de manteiga de amendoim e as passaram sobre pedaços secos de pão. Elas continuavam olhando para dentro do pote, raspando-o com a faca.
Onde está o John? – perguntou meu pai.
Minha tia se sentou, exausta. Parecia muito fraca, muito pálida. O vestido que usava estava imundo, o cabelo, desgrenhado, e seu aspecto era de tristeza, cansaço.
Estamos esperando por ele. Faz algum tempo que ele não dá as caras.
Aonde ele foi?
Não sei. Apenas se mandou na moto.
Só o que ele faz – disse meu pai – é se preocupar com essa moto.
Este é o Henry Jr.?
Sim.
Ele só fica olhando. É tão quietinho.
É assim que queremos que ele seja.
As águas paradas são as que têm maior profundidade.
Não nesse caso. A única profundidade que ele tem são os buracos dos ouvidos.
As duas garotas pegaram suas fatias de pão e foram para a rua e sentaram na varanda para comê-las. Não falaram conosco. Simpatizei bastante com elas. Eram magras como a mãe, mas ainda assim não deixavam de ser bem bonitas.
Como você está, Anna? – perguntou minha mãe.
Estou bem.
Não é o que parece, Anna. Acho que você precisa de comida.
Por que o garoto não se senta? Sente, Henry.
Ele gosta de ficar de pé – disse meu pai. – Faz com que fique mais forte. Ele está se preparando para lutar contra os chinas.
Você não gosta dos chineses? – minha tia me perguntou.
Não – respondi.
Bem, Anna – perguntou meu pai –, como vão as coisas?
Pra falar a verdade, a situação está terrível... O proprietário continua cobrando o acerto do aluguel. Diz coisas horríveis. Ele me assusta. Não sei mais o que fazer.
Ouvi dizer que a polícia está na cola do John – disse meu pai.
Ele não fez nada de mais.
O que ele fez exatamente?
Falsificou alguns dimes.
Dimes? Jesus Cristo, mas que tipo de ambição é essa?
John não queria ser um bandido de verdade.
Parece que ele não quer ser nada.
Ele seria, se pudesse.
Claro. Assim como uma cobra não se arrastaria se tivesse asas.
Houve um silêncio, e os três ficaram ali sentados. Me voltei e olhei para o lado de fora. As garotas já estavam na rua, seguindo para algum lugar.
Vamos, sente-se, Henry – pediu minha tia Anna.
Fiquei no mesmo lugar:
Obrigado, estou bem aqui.
Anna – perguntou minha mãe –, tem certeza de que John vai voltar?
Quando cansar de galinhar, ele volta – disse meu pai.
John ama suas filhas... – disse Anna.
Ouvi dizer que os tiras o perseguem por causa de outra coisa.
Que coisa?
Estupro.
Estupro?
Sim, Anna, foi o que ouvi dizer. Ele estava andando de moto dia desses. Uma jovem pedia carona. Ele a colocou na garupa da moto e, enquanto rodavam, John subitamente viu uma garagem vazia. Guiou até lá, fechou a porta e estuprou a garota.
Como você descobriu isso?
Como eu descobri? Ora, os tiras me procuraram e me contaram. Queriam saber onde andava meu irmão.
Você disse a eles?
Pra quê? Para que ele fosse preso e fugisse às suas responsabilidades? Isto é justamente o que ele está esperando.
Nunca tinha visto as coisas dessa maneira.
Não que eu seja conivente com um estupro.
Às vezes um homem não tem controle sobre seus atos.
O quê?
Quero dizer, após as crianças terem nascido, e com esse tipo de vida que eu levo, todas as preocupações e tal... sei que não sou mais atraente. Ele viu uma jovem, sentiu-se atraído... ela subiu na sua garupa, você sabe, colocou os braços ao redor do corpo dele...
O que você está dizendo? Você gostaria de ter sido estuprada?
Acho que não.
Bem, tenho certeza de que a garota também não gostou.
Uma mosca apareceu e começou a voar ao redor da mesa. Ficamos todos a observá-la.
Não há nada pra comer aqui – disse meu pai. – A mosca veio ao lugar errado.
A mosca foi ficando mais audaciosa. Os círculos que descrevia se aproximavam cada vez mais de nós, assim como mais presente se fazia seu zumbido.
Você não vai dizer nada aos tiras sobre a possibilidade do John voltar para casa, certo? – perguntou minha tia a meu pai.
Não se preocupe. Não vou dar essa moleza a ele.
A mão da minha mãe cortou o ar. Fechou-se e ela a trouxe de volta à mesa.
Peguei – ela disse.
Pegou o quê? – perguntou meu pai.
A mosca – ela sorriu.
Não acredito...
Vê a mosca voando por aí? Ela sumiu.
Vai ver que voou para outro lugar.
Não, está aqui na minha mão.
Ninguém tem reflexos tão rápidos assim.
Garanto que ela está na minha mão.
Bobagem.
Não acredita em mim?
Não.
Abra a boca.
Está bem.
Meu pai abriu a boca, e minha mãe empurrou sua mão fechada sobre ela. Meu pai deu um pulo, agarrando o próprio pescoço.
JESUS CRISTO!
A mosca saiu da boca e recomeçou a voar em círculos ao redor da mesa.
Basta – disse meu pai –, estamos indo pra casa!
Ele se ergueu e saiu pela porta, seguiu pela calçada e entrou no Modelo-T. Sentou-se muito ereto, com um aspecto ameaçador.
Trouxemos algumas latas de comida para vocês – disse minha mãe à minha tia. – Lamento que não seja dinheiro, mas Henry tem medo que John gaste tudo em gim ou em gasolina para a moto. Não é lá muita coisa: sopa, carne moída, ervilhas...
Oh, Katherine, muito obrigada! Muitíssimo obrigada a vo...
Minha mãe se ergueu, e eu a segui. Havia duas caixas com comidas enlatadas no carro. Vi meu pai sentado lá, rígido. Ele continuava furioso.
Minha mãe me alcançou a caixa menor de enlatados e pegou a maior, e eu a segui de volta ao casebre. Ajeitamos as caixas na pequena despensa. Tia Anna se aproximou e pegou uma das latas. Era uma lata de ervilha, cujo rótulo era deco rado com uma infinidade de ervilhazinhas redondas e verdes.
Isso tudo é tão amável – disse minha tia.
Anna, temos que ir. O orgulho de Henry está ferido.
Minha tia envolveu minha mãe com os braços.
Tudo tem sido tão horrível. Mas isso parece um sonho. Espere até as garotas voltarem. Esperem até que as garotas vejam todas essas latas de comida.
Minha mãe também abraçou minha tia. Depois se separaram.
John não é um homem mau – disse minha tia.
Eu sei – replicou minha mãe. – Até logo, Anna.
Até logo, Katherine. Até logo, Henry.
Minha mãe se voltou em direção à porta e saiu. Eu a segui. Caminhamos até o carro e embarcamos. Meu pai deu a partida.
Enquanto nos afastávamos, vi que minha tia nos acenava da porta. Mamãe respondeu ao aceno. Meu pai não. Tampouco eu.
Charles Bukowski, in Misto-quente

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