terça-feira, 26 de julho de 2016

Às três da manhã

Ei-la que borda ao clarão do abajur. Se pudesse aquela noite acabar o trabalho. Olhos cansados, sabe que não deverá dormir. Protegida no quente círculo de luz — o nome chamado pelos retratos na parede. Retratos de mortos, as vozes cochicham na casa sonolenta. Já passou a roupa, escolheu o arroz, pôs água no filtro. E, quando as vozes se calam, escuta os pingos em surdina.
Janelas fechadas, a garrafa do leite diante da porta. Guarda na cestinha a agulha e os fios; com a sombra atrás dela, apaga as lâmpadas da sala e do corredor. Antes de extinguir a do quarto, acende a lamparina sobre a cômoda: última luz do mundo. Reza de joelhos, a mão no rosto, deita-se no canto da enorme cama de casal. A essa hora em que descaminhos andam o marido e os filhos? Ergue a cabeça do travesseiro para olhar o copo iluminado. Luz tão fraca e se, na penumbra do quarto, ela tivesse uma sombra, não se acharia tão só... Uns dedos na vidraça: o galho do pessegueiro que, com o vento, bate de leve. Como se o pessegueiro quisesse conversar; tem dedos descarnados e derruba as folhas, é inverno.
Quando se deita há passos na rua, apitos de trem ao longe, ainda na face o calor do abajur. Suspende a cabeça — os olhos mantêm acesa a lamparina. Basta dormir (e já dorme, tão cansada) para que a chama se apague. O copo cheio de azeite, o pavio novo, mas a chama se apaga, assim que fecha os olhos. Pode ser o vento ou o marido, o ratinho ou a morte.
Desperta no meio da noite — a hora dos ladrões e que ladrão rouba a sua luzinha? —, só na casa escura. Nenhum passo na calçada, vento não há, o pessegueiro se encolheu. O marido dorme a seu lado, mas ficou só. Os filhos dormem no outro quarto, mas ficou só. Descansam em tão grande sossego, reza que não estejam mortos. Nem pode chamá-los... Era doença o aflito bater do coração? Tanto medo que se senta na cama, a mão na boca: Por favor, Senhor. Não agora, não no escuro!
Antes de se deitar, quem sabe o marido soprou o lume. Ou o camondongo afundou o pavio, bebe gulosamente o azeite? Agora roia o silêncio: alguém alerta no mundo. Rói, meu ratinho, é a súplica da mulher. Nada contarei ao homem. Ele o prenderia na ratoeira, me deixava só. Rói, ratinho. Rói, por favor...
Além do ratinho, os grossos pingos no filtro. Ribombam os pingos cada vez mais depressa: o seu coração. O bichinho pára de roer, orelhinha em pé e assiste a mulher na agonia.
Ela sabe que venceu a crise ao escutar novamente o camondongo. Pode chorar, não há mais perigo. Que as lágrimas enxuguem por si — ergue-se, apalpando a treva. Risca um fósforo depois de outro, acende o pavio.
No criado-mudo o remédio, a colher, o copo d'água. Depois que alumia a lamparina e toma as gotas, nada pode senão vigiar o clarão trêmulo e esperar os pardais. Geme sem querer, o marido resmunga:
Não pára de gemer?
Uma dor no coração...
Sempre a se queixar.
A voz distante, fala de costas para ela.
Que passasse a mão nos meus cabelos...
O marido ouve:... “a mão nos meus cabelos”, e ressona.
Aquela noite estava salva: a luz brilhava no copo. O marido e os filhos dormiam. O galho do pessegueiro na vidraça: Estou aqui, eu também.
Mais um dia para concluir o trabalho. Fácil dar os vestidos e os sapatos, quem quer um pano bordado pela metade? Cabeceava, sentada na cama, o ratinho saciado não roia, a água não gotejava, os pardais dormiam entre as folhas. Com o inverno caem as folhas do pessegueiro, os pardais hão de voar para longe. Se eles voarem, ó Deus, quem a despertará de sua morte?
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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