Ei-la
que borda ao clarão do abajur. Se pudesse aquela noite acabar o
trabalho. Olhos cansados, sabe que não deverá dormir. Protegida no
quente círculo de luz — o nome chamado pelos retratos na parede.
Retratos de mortos, as vozes cochicham na casa sonolenta. Já passou
a roupa, escolheu o arroz, pôs água no filtro. E, quando as vozes
se calam, escuta os pingos em surdina.
Janelas
fechadas, a garrafa do leite diante da porta. Guarda na cestinha a
agulha e os fios; com a sombra atrás dela, apaga as lâmpadas da
sala e do corredor. Antes de extinguir a do quarto, acende a
lamparina sobre a cômoda: última luz do mundo. Reza de joelhos, a
mão no rosto, deita-se no canto da enorme cama de casal. A essa hora
em que descaminhos andam o marido e os filhos? Ergue a cabeça do
travesseiro para olhar o copo iluminado. Luz tão fraca e se, na
penumbra do quarto, ela tivesse uma sombra, não se acharia tão
só... Uns dedos na vidraça: o galho do pessegueiro que, com o
vento, bate de leve. Como se o pessegueiro quisesse conversar; tem
dedos descarnados e derruba as folhas, é inverno.
Quando
se deita há passos na rua, apitos de trem ao longe, ainda na face o
calor do abajur. Suspende a cabeça — os olhos mantêm acesa a
lamparina. Basta dormir (e já dorme, tão cansada) para que a chama
se apague. O copo cheio de azeite, o pavio novo, mas a chama se
apaga, assim que fecha os olhos. Pode ser o vento ou o marido, o
ratinho ou a morte.
Desperta
no meio da noite — a hora dos ladrões e que ladrão rouba a sua
luzinha? —, só na casa escura. Nenhum passo na calçada, vento não
há, o pessegueiro se encolheu. O marido dorme a seu lado, mas ficou
só. Os filhos dormem no outro quarto, mas ficou só. Descansam em
tão grande sossego, reza que não estejam mortos. Nem pode
chamá-los... Era doença o aflito bater do coração? Tanto medo que
se senta na cama, a mão na boca: Por favor, Senhor. Não agora, não
no escuro!
Antes
de se deitar, quem sabe o marido soprou o lume. Ou o camondongo
afundou o pavio, bebe gulosamente o azeite? Agora roia o silêncio:
alguém alerta no mundo. Rói, meu ratinho, é a súplica da mulher.
Nada contarei ao homem. Ele o prenderia na ratoeira, me deixava só.
Rói, ratinho. Rói, por favor...
Além
do ratinho, os grossos pingos no filtro. Ribombam os pingos cada vez
mais depressa: o seu coração. O bichinho pára de roer, orelhinha
em pé e assiste a mulher na agonia.
Ela
sabe que venceu a crise ao escutar novamente o camondongo. Pode
chorar, não há mais perigo. Que as lágrimas enxuguem por si —
ergue-se, apalpando a treva. Risca um fósforo depois de outro,
acende o pavio.
No
criado-mudo o remédio, a colher, o copo d'água. Depois que alumia a
lamparina e toma as gotas, nada pode senão vigiar o clarão trêmulo
e esperar os pardais. Geme sem querer, o marido resmunga:
— Não
pára de gemer?
— Uma
dor no coração...
—
Sempre a se queixar.
A
voz distante, fala de costas para ela.
— Que
passasse a mão nos meus cabelos...
O
marido ouve:... “a mão nos meus cabelos”, e ressona.
Aquela
noite estava salva: a luz brilhava no copo. O marido e os filhos
dormiam. O galho do pessegueiro na vidraça: Estou aqui, eu também.
Mais
um dia para concluir o trabalho. Fácil dar os vestidos e os sapatos,
quem quer um pano bordado pela metade? Cabeceava, sentada na cama, o
ratinho saciado não roia, a água não gotejava, os pardais dormiam
entre as folhas. Com o inverno caem as folhas do pessegueiro, os
pardais hão de voar para longe. Se eles voarem, ó Deus, quem a
despertará de sua morte?
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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