Uma
das alegrias da literatura está em que ela cria a possibilidade de
estabelecer conversas mansas com pessoas ausentes e mesmo mortas.
Muitos dos meus melhores amigos, pessoas com quem converso
longamente, estão mortos há muito tempo. É o caso de Albert Camus.
Ler Camus é um exercício de felicidade. Poderíamos até formar uma
dupla... Seus pensamentos mais pessoais não se encontram em seus
livros com princípio, meio e fim. Encontram-se nos seus diários,
onde registrava os pensamentos que lhe ocorriam sem imaginar que um
dia seriam transformados em livros. Muitas das suas experiências
batem com as minhas. Num certo lugar ele escreve notas para um
romance: “Infância pobre. Eu tinha vergonha da minha pobreza e da
minha família. Só conheci essa vergonha quando me puseram no liceu.
Antes, toda a gente era como eu e a pobreza parecia-me o próprio ar
desse mundo. No liceu foi-me dado comparar”. Num outro lugar ele
comenta: “Que pode um homem desejar de melhor do que a pobreza? Não
disse miséria nem o trabalho sem esperança do proletário moderno.
Mas não vejo o que pode desejar-se a mais do que a pobreza ligada a
um ócio ativo”. Foi exatamente essa a minha experiência. Minha
infância foi vivida na pobreza. A princípio, grande pobreza.
Depois, pobreza simplesmente. Desses anos não tenho uma única
memória infeliz. Tive dores, como toda criança tem: dor de dente,
dor de tombo, dor de barriga, dor de queimadura. Mas não tive
experiência de infelicidade. Minha infelicidade começou quando a
vida melhorou e nos mudamos de uma cidade do interior de Minas para o
Rio de Janeiro. Meu pai me matriculou num colégio de cariocas ricos.
Foi então que, como Camus, senti vergonha da minha pobreza e da
minha família: eu era diferente, não pertencia ao mundo elegante
dos meus colegas. Num outro lugar do seu diário, Camus registrou:
“Atenção: Kierkegaard, a origem dos nossos males está na
comparação”. Kierkegaard foi um solitário filósofo dinamarquês.
Os desbravadores são sempre solitários. Veem coisas que os outros
não veem. Como foi o caso de Nietzsche. Kierkegaard foi meu
primeiro amigo filósofo. Com ele tive longas e mansas conversas. Sua
filosofia é construída em meio a uma teia de sutis percepções
psicológicas. O sofrimento da pobreza, quando não é miséria, se
encontra na comparação. A miséria é diferente da pobreza. A
pobreza está muito próxima da simplicidade. Simplicidade tem a ver
com as coisas que são essenciais. Simplicidade é caminhar com uma
mochila leve. A riqueza, ao contrário, é caminhar arrastando muitas
malas pesadas, sem alças... A pobreza simples é uma pobreza feliz.
Feliz porque leve. É a comparação, origem da inveja, que a torna
infeliz. Camus e eu experimentamos a infelicidade da comparação na
escola. Mas hoje não é preciso ir à escola para sentir a sua
maldição. Basta ligar a televisão. A televisão é uma máquina de
infelicidade, na medida em que ela nos obriga a comparar. Os pobres,
nos lugares mais distantes, ligam as novelas e sentem a sua desgraça.
A comparação é um exercício dos olhos: vejo-me; estou feliz.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
Nenhum comentário:
Postar um comentário