sábado, 18 de junho de 2016

Desentendimento

Estas coisas são complicadas. Quando o Paulo Otávio disse “Maravilha!” olhando a paisagem pintada na parede do boteco com o nome e o telefone do pintor embaixo, o telefone com mais destaque do que tudo, quis dizer que a pintura era maravilhosamente kitsch, entende? E quando, num daqueles impulsos de Paulo Otávio, ele telefonou para o pintor - Amaury - e disse que queria uma pintura dele na parede do seu apartamento novo, estava pensando na sensação que a pintura causaria entre seus amigos na festa de inauguração do novo apartamento, combinando com o ventilador de teto em estilo filme-dos-anos-quarenta-passado-em-Marrocos que desencavara num ferro-velho e com o anão de jardim tão horroroso, mas tão horroroso que era bonito.
Todos dariam muita risada e diriam “Coisas de Paulo Otávio”.
Agora, é preciso entender que quando o velho Amaury, que nunca ouviu a palavra kitsch, recebeu o telefonema e a encomenda, decidiu que tinha chegado a hora do seu reconhecimento e que uma pintura sua na parede não de um boteco, mas de um doutor, um homem educadíssimo, era a consagração, talvez o começo de uma nova carreira, já que ninguém mais queria pintura em botecos. E quando houve o encontro entre os dois - o velho Amaury usando gravata pela primeira vez desde o enterro da patroa e o Paulo Otávio de macacão abóbora -, o Paulo Otávio começou a dizer que tipo de pintura queria, mas o Amaury o interrompeu com um gesto e disse:
- Deixa comigo, doutor.
Há dias não pensava em outra coisa a não ser naquela pintura, a mais importante da sua vida. Pediu para examinar a parede, tirou medidas e foi para casa fazer alguns esboços. “Esboços”, estranhou o Paulo Otávio, mas não disse nada. Dois dias depois o Amaury chegou ao apartamento, pronto para começar. Fique à vontade, a parede é sua, disse o Paulo Otávio, mas olhando com algum temor para os esboços que o Amaury trazia embaixo do braço e pensando “Ai, ai, ai”. E quando, dias depois, Paulo Otávio viu o que Amaury estava fazendo na sua parede, bateu pé e gritou que não era nada daquilo, queria uma paisagem igual à do boteco. Mas o Amaury nem ouviu, tão maravilhado estava com a própria obra, “A Odisseia do Homem na Terra”, desde os tempos bíblicos até a chegada na Lua, num estilo que combinava figurativismo e abstracionismo, tudo com muito simbolismo, pois certamente um doutor não ia querer na sua parede uma paisagem igual à de um boteco.
- Pare imediatamente! - ordenou Paulo Otávio.
Mas o Amaury nem ouviu. E nos dias seguintes, indiferente aos apelos e às ameaças de Paulo Otávio, que inclusive tivera que atrasar o resto da decoração do apartamento enquanto a pintura não terminava, continuou trabalhando, convencido de que o doutor só estava nervoso porque ainda não entendera toda a concepção da obra.
Finalmente Paulo Otávio teve que tomar uma atitude drástica.
- Eu vou chamar a polícia.
- O que é isso, doutor?
- Então pare. Agora. Nem uma pincelada a mais.
- Mas eu estou recém no descobrimento da América.
- Agora!
O Amaury assinou a pintura, botou o telefone, recebeu o pagamento combinado e se foi, deixando Paulo Otávio na dúvida: mandava repintar a parede ou deixava como estava?
Porque é preciso entender que, assim como existe um ponto em que o mau gosto se transforma em kitsch e outro, ainda mais difícil de definir, em que o kitsch volta a ser mau gosto irredimível, existe um ponto delicadíssimo em que é impossível dizer se a intenção do pintor - ou, no caso, do dono da parede - era o mau gosto mesmo ou era sério, e portanto irrecuperável pelo kitsch, entende? Seja como for, Paulo Otávio decidiu arriscar, deixou a parede como estava e só respirou aliviado quando Vando, o primeiro a chegar na festa, começou a pular quando viu a pintura e a gritar “Maravilha! Maravilha!”, querendo dizer, claro, “Que horror! Que horror!”, mas no sentido de “Maravilha! Maravilha!”. Enfim, essas coisas são complicadas.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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