terça-feira, 14 de junho de 2016

A divisão das 8 moedas de ouro


Três dias depois, aproximávamo-nos das ruínas de pequena aldeia — denominada Sippar — quando encontramos, caído na estrada, um pobre viajante, roto e ferido.
Socorremos o infeliz e dele próprio ouvimos o relato de sua aventura.
Chamava-se Salém Nasair, e era um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Ao regressar, poucos dias antes, de Báçora, com grande caravana, pela estrada de el-Hilleh, fora atacado por uma chusma de nômades persas do deserto. A caravana foi saqueada e quase todos os seus componentes pereceram nas mãos dos beduínos. Ele — o chefe — conseguira, milagrosamente, escapar, oculto na areia, entre os cadáveres dos seus escravos.
E, ao concluir a narrativa de sua desgraça, perguntou-nos com voz angustiosa:
Trazeis, por acaso, ó muçulmanos, alguma coisa que se possa comer? Estou quase, quase a morrer de fome!
Tenho, de resto, três pães — respondi.
Trago ainda cinco! — afirmou, a meu lado, o Homem que Calculava.
Pois bem — sugeriu o xeque —, juntemos esses pães e façamos uma sociedade única. Quando chegar a Bagdá prometo pagar com 8 moedas de ouro o pão que comer!
Assim fizemos. No dia seguinte, ao cair da tarde, entramos na célebre cidade de Bagdá, a pérola do Oriente.
Ao atravessarmos vistosa praça, demos de rosto com aparatoso cortejo. Na frente marchava, em garboso alazão, o poderoso Ibrahim Maluf, um dos vizires.
O vizir, ao avistar o xeque Salém Nasair em nossa companhia, chamou-o e, fazendo parar a sua poderosa guarda, perguntou-lhe:
Que te aconteceu, ó meu amigo? Por que te vejo chegar a Bagdá, roto e maltrapilho, em companhia de dois homens que não conheço?
O desventurado xeque narrou, minuciosamente, ao poderoso ministro, tudo o que lhe ocorrera em caminho, fazendo a nosso respeito os maiores elogios.
Paga sem perda de tempo a esses dois forasteiros — ordenou-lhe o grão-vizir.
E, tirando de sua bolsa 8 moedas de ouro, entregou-as a Salém Nasair, acrescentando:
Quero levar-te agora mesmo ao palácio, pois o Comendador dos Crentes deseja, com certeza, ser informado da nova afronta que os bandidos e beduínos praticaram, matando nossos amigos e saqueando caravanas dentro de nossas fronteiras.
O rico Salém Nasair disse-nos, então:
Vou deixar-vos, meus amigos. Antes, porém, desejo agradecer-vos o grande auxílio que ontem me prestastes. E para cumprir a palavra dada, vou pagar já o pão que generosamente me destes!
E dirigindo-se ao Homem que Calculava disse-lhe:
Vais receber, pelos 5 pães, 5 moedas!
E voltando-se para mim, ajuntou:
E tu, ó Bagdali, pelos 3 pães, vais receber 3 moedas! Com grande surpresa, o calculista objetou respeitoso:
Perdão, ó Xeque. A divisão, feita desse modo, pode ser muito simples, mas não é matematicamente certa! Se eu dei 5 pães devo receber 7 moedas; o meu companheiro bagdali, que deu 3 pães, deve receber apenas uma moeda.
Pelo nome de Maomé! — interveio o vizir Ibrahim, interessado vivamente pelo caso. — Como justificar, ó Estrangeiro, tão disparatada forma de pagar 8 pães com 8 moedas? Se contribuíste com 5 pães, por que exiges 7 moedas? Se o teu amigo contribuiu com 3 pães, por que afirmas que ele deve receber uma única moeda?
O Homem que Calculava aproximou-se do prestigioso ministro e assim falou:
Vou provar-vos, ó Vizir, que a divisão das 8 moedas, pela forma por mim proposta, é matematicamente certa. Quando, durante a viagem, tínhamos fome, eu tirava um pão da caixa em que estavam guardados e repartia-o em três pedaços, comendo, cada um de nós, um desses pedaços. Se eu dei 5 pães, dei, é claro, 15 pedaços; se o meu companheiro deu 3 pães, contribuiu com 9 pedaços. Houve, assim, um total de 24 pedaços, cabendo, portanto, 8 pedaços para cada um. Dos 15 pedaços que dei, comi 8; dei, na realidade, 7; o meu companheiro deu, como disse, 9 pedaços e comeu, também, 8; logo, deu apenas 1. Os 7 pedaços que eu dei e que o bagdali forneceu formaram os 8 que couberam ao xeque Salém Nasair. Logo, é justo que eu receba 7 moedas e o meu companheiro, apenas uma.
O grão-vizir, depois de fazer os maiores elogios ao Homem que Calculava, ordenou que lhe fossem entregues sete moedas, pois a mim me cabia, por direito, apenas uma. Era lógica, perfeita e irrespondível a demonstração apresentada pelo matemático.
Esta divisão — retorquiu o calculista — de sete moedas para mim e uma para meu amigo, conforme provei, é matematicamente certa, mas não é perfeita aos olhos de Deus!
E tomando as moedas na mão dividiu-as em duas partes iguais. Deu-me uma dessas partes (4 moedas), guardando, para si, as quatro restantes.
Esse homem é extraordinário — declarou o vizir. — Não aceitou a divisão proposta de 8 dinares em duas parcelas de 5 e 3, em que era favorecido; demonstrou ter direito a 7 e que seu companheiro só devia receber um dinar, acabando por dividir as 8 moedas em 2 parcelas iguais, que repartiu, finalmente, com o amigo.
E acrescentou com entusiasmo:
Mac Allah! Esse jovem, além de parecer-me um sábio e habilíssimo nos cálculos e na Aritmética, é bom para o amigo e generoso para o companheiro. Tomo-o, hoje mesmo, para meu secretário!
Poderoso Vizir — tornou o Homem que Calculava —, vejo que acabais de fazer com 32 vocábulos, com um total de 143 letras, o maior elogio que ouvi em minha vida, e eu, para agradecer-vos, sou forçado a empregar 64 palavras nas quais figuram nada menos de 286 letras. O dobro, precisamente! Que Alá vos abençoe e vos proteja!
Com tais palavras o Homem que Calculava deixou a todos nós maravilhados com sua argúcia e invejável talento. A sua capacidade de calculista ia ao extremo de contar as palavras e as letras de uma frase que acabara de ouvir.
Malba Tahan, in O homem que calculava

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