Certa
vez dei uma conferência sobre García Lorca, anos depois de sua
morte, e um dos espectadores me perguntou:
-
Porque o senhor disse na Ode a Federico que por ele “pintam de azul
os hospitais”?
-
Olhe, companheiro - respondi -, fazer perguntas desse tipo a um poeta
é como perguntar a idade das mulheres. A poesia não é uma matéria
estática mas uma corrente fluida que muitas vezes escapa das mãos
do próprio criador. Sua matéria-prima está composta de elementos
que são e ao mesmo tempo não são, de coisas existentes e
inexistentes. De qualquer modo tratarei de responder-lhe com
sinceridade. Para mim a cor azul é a mais bela das cores. Tem a
implicação do espaço humano, como a abóbada celeste, em direção
à liberdade e à alegria. A presença de Federico, sua magia
pessoal, impunham uma atmosfera de júbilo ao seu redor. Meu verso
provavelmente quer dizer que inclusive os hospitais, inclusive a
tristeza dos hospitais, podiam se transformar sob o sortilégio de
sua influência e se verem convertidos subitamente em belos edifícios
azuis.
Federico
teve uma antevisão de sua morte. Certa vez que voltava de uma
tournée teatral me chamou para contar um fato muito estranho. Com os
artistas de “La
Barraca”
tinha chegado a um povoado longínquo de Castilla, acampando nas
redondezas. Fatigado pelas preocupações da viagem, Federico não
conseguia dormir. Ao amanhecer levantou-se e saiu a vagar sozinho
pelos arredores. Fazia frio, esse frio de punhal que Castilla reserva
para o viajante, para o forasteiro. A névoa se desprendia em massas
brancas e convertia tudo em sua dimensão fantasmagórica.
Um
grande gradil de ferro oxidado, estátuas e colunas em ruínas,
caídas entre as folhas secas. Deteve-se na porta de uma antiga
propriedade. Era a entrada para o extenso parque de uma quinta
feudal. O abandono, a hora e o frio tornavam a solidão mais
penetrante. Federico sentiu-se subitamente oprimido pelo que viria
daquele amanhecer, por algo confuso que ali tinha que acontecer.
Sentou-se num capitel tombado.
Um
carneiro pequenino começou a pastar entre as ruínas e sua aparição
era como um pequeno anjo de névoa que humanizava subitamente a
solidão, caindo como uma pétala de ternura sobre a solidão do
lugar. O poeta sentiu-se acompanhado.
De
súbito um bando de porcos entrou também no recinto. Eram quatro ou
cinco animais escuros, porcos negros semi-selvagens com fome feroz e
patas de pedra.
Federico
presenciou então uma cena espantosa. Os porcos lançaram-se sobre o
cordeiro e, ante o horror do poeta, despedaçaram-no e o devoraram.
Esta
cena de sangue e solidão fez com que Federico ordenasse a seu teatro
ambulante continuar imediatamente o caminho.
Ainda
transido de horror, três meses antes da guerra civil, Federico me
contava esta história terrível.
Vi
depois, cada vez com maior clareza, que aquele acontecimento foi a
representação antecipada de sua morte, a premonição de sua
incrível tragédia.
Federico
García Lorca não foi fuzilado; foi assassinado. Naturalmente
ninguém podia pensar que o matariam algum dia. De todos os poetas da
Espanha era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um
menino pela sua alegria maravilhosa. Quem poderia crer que tivesse
sobre a terra, e sobre sua terra, monstros capazes de um crime tão
inexplicável?
Aquele
crime foi para mim o acontecimento mais doloroso de uma longa luta. A
Espanha sempre foi um campo de gladiadores, uma terra com muito
sangue. A praça de touros, com seu sacrifício e sua elegância
cruel, repete - ornamentado festivamente - o antigo combate mortal
entre a sombra e a luz.
A
Inquisição encarcera Frei Luís de León, Quevedo padece em seu
calabouço, Colón caminha com grilhões nos pés. E o espetáculo
máximo foi o ossário no Escorial, como agora é o Monumento
a los Caídos
com uma cruz sobre um milhão de mortos e sobre prisões escuras e
incontáveis.
Pablo
Neruda,
in Confesso
que vivi
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