— O
que está acontecendo, dona Eduviges?
Ela
balançou a cabeça como se despertasse de um sonho.
— É
o cavalo de Miguel Páramo, galopando pelo caminho da Media Luna.
— Mas
então, alguém mora em Media Luna?
— Não,
lá não mora ninguém.
— E
então?
— É
só o cavalo, que vai e que vem. Eles eram inseparáveis. Corre por
tudo que é canto, procurando por ele e volta sempre a esta hora.
Talvez o coitado não aguente o remorso. Porque até os animais sabem
quando cometem um crime, não é?
— Não
entendo. Nem ouvi nenhum ruído de nenhum cavalo.
— Não?
— Não.
— Então
é coisa do meu sexto sentido. Um dom que Deus me deu; ou talvez uma
maldição. Só eu sei o que sofri por causa disso.
Guardou
um longo silêncio e depois acrescentou:
— Tudo
começou com Miguel Páramo. Só eu soube o que tinha acontecido com
ele na noite em que morreu. Estava deitada quando ouvi seu cavalo
regressar rumo à Media Luna. Achei estranho porque ele nunca voltava
naquela hora. Somente na entrada da madrugada. Ia conversar com sua
noiva num povoado chamado Contla, um tanto longe daqui. Saía cedo e
demorava a voltar. Mas naquela noite não regressou... Está ouvindo
agora? Claro que dá para ouvir. Está de regresso.
— Não
ouço nada.
— Então
é coisa minha. Bem, como eu estava dizendo, essa história de que
ele não regressou é só um jeito de falar. O cavalo mal tinha
acabado de passar, quando ouvi que batiam na minha janela. Vá saber
se foi ilusão minha. Mas a verdade é que alguma coisa me obrigou a
ir ver quem era. E era ele, Miguel Páramo. Não estranhei, pois
houve um tempo em que passava a noite na minha casa dormindo comigo,
até encontrar essa moça que sorveu seus miolos.
“— O
que aconteceu? — perguntei a Miguel Páramo. — Levou um fora?
“—
Não. Ela continua gostando de mim —
ele me disse. – Acontece que não consegui encontrá-la. Não achei
o povoado. Havia muita neblina ou fumaça ou sei lá o quê; mas o
que sei é que Contla não existe. Fui além dela, pelos meus
cálculos, e não encontrei nada. Vim contar isso a você, porque
você me compreende. Se eu contasse aos outros de Comala iam dizer
que fiquei louco, do jeito que sempre disseram que sou.
“—
Não. Louco não, Miguel. Você deve
estar é morto. Lembre-se que disseram a você que esse cavalo ainda
iria matá-lo algum dia. Lembre-se, Miguel Páramo. Pode até ser que
você tenha desandado a fazer loucuras, mas isso já é uma outra
história.
“— Eu
só saltei a cerca de pedra que ultimamente meu pai mandou botar. Fiz
o Colorado saltar para não dar esse rodeio tão longo que é preciso
fazer agora para encontrar o caminho. Sei que pulei e depois
continuei correndo; mas, como eu digo, não havia nada além de
fumaça e fumaça e fumaça.
“–
Amanhã seu pai vai se contorcer de dor —
eu disse. — Sinto por ele. Agora vá embora e descanse em paz,
Miguel. Agradeço você ter vindo se despedir de mim.
“E
fechei a janela.
“Antes
que amanhecesse o peão da Media Luna veio me dizer:
“— O
patrão dom Pedro suplica. O menino Miguel morreu. Ele suplica pela
sua companhia.
“— Já
estou sabendo — respondi. — Pediram a você que chorasse?
“—
Sim, senhora, dom Fulgor me disse que
dissesse isso chorando.
“—
Está bem. Diga a dom Pedro que eu vou.
Faz muito tempo que trouxeram Miguel?
“—
Não faz nem meia hora. Se fosse antes,
talvez ele tivesse se salvado. Ainda que, conforme disse o doutor que
o apalpou, ele já estivesse frio fazia tempo. Ficamos sabendo porque
o Colorado voltou sozinho e ficou tão inquieto que não deixou
ninguém dormir. A senhora sabe como ele e o cavalo se gostavam, e
estou a ponto de achar que o cavalo sofre mais até do que dom Pedro.
Não comeu nem dormiu e só faz correr para lá e para cá. Como se
soubesse, a senhora sabe? Como se se sentisse despedaçado e
carcomido por dentro.
“—
Não se esqueça de fechar a porta quando
sair.
“E
o moço da Media Luna foi embora.
—
Alguma vez você ouviu o queixume de um
morto? — ela me perguntou.
— Não,
dona Eduviges.
—
Melhor para você.
Juan
Rulfo, in Pedro Páramo
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