quinta-feira, 7 de abril de 2016

Um certo capitão Rodrigo

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Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o cap. Rodrigo Cambará entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo, entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque, e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido: 
Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!
Havia por ali uns dois ou três homens, que o miraram de soslaio sem dizer palavra. Mas dum canto da sala ergueu-se um moço moreno, que puxou a faca, olhou para Rodrigo e exclamou:
Pois dê!
Os outros homens afastaram-se como para deixar a arena livre, e Nicolau, atrás do balcão, começou a gritar:
Aqui dentro não! Lá fora! Lá fora!
Rodrigo, porém, sorria, imóvel, de pernas abertas, rebenque pendente do pulso, mãos na cintura, olhando para o outro com um ar que era ao mesmo tempo de desafio e simpatia.
Incomodou-se comigo? — perguntou, jovial, examinando o rapaz de alto a baixo.
Não sou de briga, mas não costumo aguentar desaforo.
Oôi bicho bom!
Os olhos de Rodrigo tinham uma expressão cômica.
Essa sai ou não sai? — perguntou alguém do lado de fora, vendo que Rodrigo não desembainhava a adaga.
O recém-chegado voltou a cabeça e respondeu calmo:
Não sai. Estou cansado de pelear. Não quero puxar arma pelo menos por um mês. — Voltou-se para o homem moreno e, num tom sério e conciliador, disse: — Guarde a arma, amigo.
O outro, entretanto, continuou de cenho fechado e faca em punho. Era um tipo indiático, de grossas sobrancelhas negras e zigomas salientes.
Vamos, companheiro — insistiu Rodrigo. — Um homem não briga debalde. Eu não quis ofender ninguém. Foi uma maneira de falar...
Depois de alguma relutância o outro guardou a arma, meio desajeitado, e Rodrigo estendeu-lhe a mão, dizendo:
Aperte os ossos.
O caboclo teve uma breve hesitação, mas por fim, sempre sério, apertou a mão que Rodrigo lhe oferecia.
Agora vamos tomar um trago — convidou este último.
Mas eu pago — disse o outro.
Tinha lábios grossos, dum pardo avermelhado e ressequido.
O convite é meu.
Mas eu pago — repetiu o caboclo.
Está bem. Não vamos brigar por isso.
Aproximaram-se do balcão.
Duas caninhas! — pediu Rodrigo.
Nicolau olhava para os dois homens com um sorriso desdentado na cara de lua cheia, onde apontava uma barba grossa e falha.
É da boa — disse ele, abrindo uma garrafa de cachaça e enchendo dois copinhos.
Houve um silêncio durante o qual ambos beberam: o moço em pequenos goles e Rodrigo dum sorvo só, fazendo muito barulho e por fim estralando os lábios. Tornou a pôr o copo sobre o balcão, voltou-se para o homem moreno e disse:
Meu nome é Rodrigo Cambará. Como é a sua graça?
Juvenal Terra.
Mora aqui no povo?
Moro.
Criador?
O outro sacudiu a cabeça negativamente.
Faço carreteadas daqui pro Rio Pardo e de lá pra cá.
Mais um trago?
Não. Sou de pouca bebida.
Rodrigo tornou a encher o copo, dizendo:
Pois comigo, companheiro, a coisa é diferente. Não tenho meias medidas. Ou é oito ou oitenta.
Hai gente de todo o jeito — limitou-se a dizer Juvenal.
Rodrigo olhou para o vendeiro.
Como é a sua graça mesmo, amigo?
Nicolau.
Será que se arranja por aí alguma coisa de comer? Nicolau coçou a cabeça.
Posso mandar fritar uma linguiça.
Pois que venha. Sou louco por linguiça!
O capitão tomou seu terceiro copo de cachaça. Juvenal, que o observava com olhos parados e inexpressivos, puxou dum pedaço de fumo em rama e duma pequena faca e ficou a fazer um cigarro.
Pois lhe garanto que estou gostando deste lugar — disse Rodrigo. — Quando entrei em Santa Fé, pensei cá comigo: Capitão, pode ser que vosmecê só passe aqui uma noite, mas também pode ser que passe o resto da vida…
Érico Veríssimo, in Um certo capitão Rodrigo, capítulo de O continente

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