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Toda
a gente tinha achado estranha a maneira como o cap. Rodrigo Cambará
entrara na vida de Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém
sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela
cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião
que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas. Devia andar lá
pelo meio da casa dos trinta, montava um alazão, trazia bombachas
claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num
dólmã militar azul, com gola vermelha e botões de metal. Tinha um
violão a tiracolo; sua espada, apresilhada aos arreios, rebrilhava
ao sol daquela tarde de outubro de 1828 e o lenço encarnado que
trazia ao pescoço esvoaçava no ar como uma bandeira. Apeou na
frente da venda do Nicolau, amarrou o alazão no tronco dum cinamomo,
entrou arrastando as esporas, batendo na coxa direita com o rebenque,
e foi logo gritando, assim com ar de velho conhecido:
—
Buenas
e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!
Havia
por ali uns dois ou três homens, que o miraram de soslaio sem dizer
palavra. Mas dum canto da sala ergueu-se um moço moreno, que puxou a
faca, olhou para Rodrigo e exclamou:
— Pois
dê!
Os
outros homens afastaram-se como para deixar a arena livre, e Nicolau,
atrás do balcão, começou a gritar:
— Aqui
dentro não! Lá fora! Lá fora!
Rodrigo,
porém, sorria, imóvel, de pernas abertas, rebenque pendente do
pulso, mãos na cintura, olhando para o outro com um ar que era ao
mesmo tempo de desafio e simpatia.
—
Incomodou-se
comigo? — perguntou, jovial, examinando o rapaz de alto a baixo.
— Não
sou de briga, mas não costumo aguentar desaforo.
— Oôi
bicho bom!
Os
olhos de Rodrigo tinham uma expressão cômica.
— Essa
sai ou não sai? — perguntou alguém do lado de fora, vendo que
Rodrigo não desembainhava a adaga.
O
recém-chegado voltou a cabeça e respondeu calmo:
— Não
sai. Estou cansado de pelear. Não quero puxar arma pelo menos por um
mês. — Voltou-se para o homem moreno e, num tom sério e
conciliador, disse: — Guarde a arma, amigo.
O
outro, entretanto, continuou de cenho fechado e faca em punho. Era um
tipo indiático, de grossas sobrancelhas negras e zigomas salientes.
—
Vamos,
companheiro — insistiu Rodrigo. — Um homem não briga debalde. Eu
não quis ofender ninguém. Foi uma maneira de falar...
Depois
de alguma relutância o outro guardou a arma, meio desajeitado, e
Rodrigo estendeu-lhe a mão, dizendo:
—
Aperte
os ossos.
O
caboclo teve uma breve hesitação, mas por fim, sempre sério,
apertou a mão que Rodrigo lhe oferecia.
— Agora
vamos tomar um trago — convidou este último.
— Mas
eu pago — disse o outro.
Tinha
lábios grossos, dum pardo avermelhado e ressequido.
— O
convite é meu.
— Mas
eu pago — repetiu o caboclo.
— Está
bem. Não vamos brigar por isso.
Aproximaram-se
do balcão.
— Duas
caninhas! — pediu Rodrigo.
Nicolau
olhava para os dois homens com um sorriso desdentado na cara de lua
cheia, onde apontava uma barba grossa e falha.
— É
da boa — disse ele, abrindo uma garrafa de cachaça e enchendo dois
copinhos.
Houve
um silêncio durante o qual ambos beberam: o moço em pequenos goles
e Rodrigo dum sorvo só, fazendo muito barulho e por fim estralando
os lábios. Tornou a pôr o copo sobre o balcão, voltou-se para o
homem moreno e disse:
— Meu
nome é Rodrigo Cambará. Como é a sua graça?
—
Juvenal
Terra.
— Mora
aqui no povo?
— Moro.
—
Criador?
O
outro sacudiu a cabeça negativamente.
— Faço
carreteadas daqui pro Rio Pardo e de lá pra cá.
— Mais
um trago?
— Não.
Sou de pouca bebida.
Rodrigo
tornou a encher o copo, dizendo:
— Pois
comigo, companheiro, a coisa é diferente. Não tenho meias medidas.
Ou é oito ou oitenta.
— Hai
gente de todo o jeito — limitou-se a dizer Juvenal.
Rodrigo
olhou para o vendeiro.
— Como
é a sua graça mesmo, amigo?
—
Nicolau.
— Será
que se arranja por aí alguma coisa de comer? Nicolau coçou a
cabeça.
— Posso
mandar fritar uma linguiça.
— Pois
que venha. Sou louco por linguiça!
O
capitão tomou seu terceiro copo de cachaça. Juvenal, que o
observava com olhos parados e inexpressivos, puxou dum pedaço de
fumo em rama e duma pequena faca e ficou a fazer um cigarro.
—
Pois
lhe garanto que estou gostando deste lugar — disse Rodrigo. —
Quando entrei em Santa Fé, pensei cá comigo: Capitão, pode ser que
vosmecê só passe aqui uma noite, mas também pode ser que passe o
resto da vida…
Érico
Veríssimo, in
Um
certo capitão Rodrigo,
capítulo de O
continente
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