Imagem: Alceu Chiesorin Nunes
As
famosas frases de Flaubert e de Fernando Pessoa, que já citei nesses
meus posts, aqui são verdadeiras defesas da literatura como mentira.
Dostoiévski, o escritor que só escrevia sobre as mais sombrias
profundezas da alma humana e mesmo assim dizia acreditar que “a
beleza salvaria o mundo”, era também um grande ideólogo da
mentira literária. Segundo ele, “A mentira é o único privilégio
do homem sobre todos os animais”.
Fingimento
ou exagero, mentira ou autoengano, a literatura se utiliza de uma
série de componentes que na vida real são malvistos ou tidos como
falhas morais — mais ainda, falhas de caráter. Assim, se na vida
procuramos uma identidade própria, na literatura fugimos dela. Se na
vida devemos ser honestos e comedidos, na literatura o exagero e a
dissimulação em muitos casos valem tanto ou mais do que a precisão.
O
melhor exemplo que me ocorre de um escritor que usa o exagero como
recurso primordial é o austríaco Thomas Bernhard. Sua literatura é
filha da raiva, não permite contenção. Como escritor, lhe cabe
melhor a distorção — mesmo em meio a uma prosa realista — do
que a exatidão. Em um conjunto memorável de livros de memórias,
publicado pela Companhia das Letras em um só volume sob o título
Origem,
o autor já de cara, no primeiro parágrafo, apresenta-se claramente
exagerado. Conta que aos oito anos de idade montou pela primeira vez
numa bicicleta do seu tutor e, sem nunca ter aprendido a pedalar e
sem pedir autorização, foi sozinho até Salzburg, a trinta
quilômetros de onde morava. O roubo da bicicleta do padrasto e a
implausível fuga de trinta quilômetros, logo no primeiro dia que o
protagonista aprendeu a pedalar, é fundamental para marcar o início
de uma vida de transgressões, na qual o narrador se apresenta
deslocado socialmente, o tempo todo. Bernhard se mostra quase ausente
do mundo, em tudo o que escreve. Mesmo sendo ele mesmo seu grande
personagem, a pacata realidade austríaca não cabe em seus escritos,
em que encontramos apenas o seu ser exagerado. Algumas páginas
depois da sua fuga, tendo chegado à casa de um colega, ele passa a
descrever o que seria, na verdade, o seu primeiro ato como narrador.
Fala de si, aos oito anos, contando a um terceiro o feito do roubo da
bicicleta, com as seguintes palavras: “fiz a ele um relato
absolutamente dramático, o qual, eu estava convencido, só podia ser
considerado uma bem-acabada obra de arte, embora não houvesse
nenhuma dúvida de que se tratava de acontecimentos e fatos reais.
Nos pontos que me pareciam mais favoráveis detive-me um pouco mais,
reforçando um aspecto, atenuando outro, sempre visando o ápice da
história toda, sem antecipar nenhum momento culminante e, de resto,
sem perder de vista meu papel central naquele meu poema dramático”.
Mais à frente, no mesmo conjunto de livros, Bernhard se qualificará
como um encrenqueiro: “tudo o que escrevo, tudo que faço é
perturbação e irritação”. E continua: “Queremos dizer a
verdade e, no entanto, não dizemos a verdade […] do ponto de vista
lógico, a verdade que conhecemos é a mentira que, incapazes que
somos de contorná-la, se faz verdade […]. Em toda nossa existência
de leitores, jamais lemos uma verdade, ainda que com frequência
sejam fatos as coisas que lemos. O que lemos é, pois,
invariavelmente a mentira como verdade, a verdade como mentira etc.”.
Escolhendo
sempre em sua vida opções distantes das esperadas socialmente, o
escritor austríaco apresenta-se como um fugitivo e assim aproveita
para caracterizar a espécie humana e, mais particularmente, os
escritores e artistas, que transformam a vida num teatro. Prometo
parar com as citações por aqui, mas permitam-me ainda uma última.
Bernhard escreve: “De que servem as cartas que um louco tem na mão,
ainda que ele não afirme não ser louco? Toda criança é sempre um
diretor teatral, e eu fui desde muito cedo um diretor de teatro.
Primeiro encenei uma completa tragédia; depois uma comédia; em
seguida, outra tragédia, até que o teatro se misturou, já não é
possível reconhecer se se trata de tragédia ou comédia […].
Estamos sempre à frente de nós mesmos e não sabemos se devemos
aplaudir ou não […]. O teatro, no verdadeiro sentido da palavra,
foi nosso ponto de partida. A natureza é o teatro em si. E nessa
natureza que é o teatro em si os seres humanos são os atores, dos
quais já não há de esperar muito”.
Mas
se a ficção precisa da liberdade do exagero, ela só é
bem-sucedida se criar uma distorção, ou um teatro, coerente, do
começo ao fim. Além da representação, ou do fingimento, a
distorção na verdade pode ser uma boa definição da prática mais
usual dos escritores. Mas ela só ocorre no princípio, ou por
princípio. Uma vez realizado o salto para a situação imaginada,
uma segunda distorção ganha ares de pecado, incoerência ou de
inconsistência. Ao entrar na fantasia, tudo o que o escritor precisa
fazer é seguir coerente, vivendo integralmente o que imaginou, até
o ponto final do romance. Mentir com convicção, fingir com
propriedade, e até o fim. Ao editor cabe avaliar principalmente a
integridade da dissimulação, ser um juiz feroz da coerência da boa
mentira. No fundo, somos meros fiscais do fingimento, o que, diga-se
de passagem, nem sempre é tarefa fácil. No nosso dia a dia não
entra em discussão se as narrativas ficcionais ou até mesmo
memorialísticas são falsas ou não, mas sim se a falsidade se
sustenta com propriedade até o final. O curioso é que muitas vezes
a realidade parece ser até mais implausível do que a ficção. O
próprio Dostoiévski, que aqui já foi apresentado como o ideólogo
tanto da beleza como da mentira, parece certa vez ter afirmado: “A
verdadeira verdade é sempre inverossímil”.
Sou
um escritor menor, mas permitam-me, mesmo assim, usar exemplos
próprios para ilustrar o que quero dizer. Certa feita, tomei um
avião para Lisboa onde deveria fazer um breve discurso por ocasião
do lançamento de Ensaio
sobre e lucidez
de
José Saramago. O avião tardava a sair, e uma movimentação cada
vez mais crescente entre os comissários de voo começou a se fazer
notar. Depois de certo tempo soubemos que um passageiro com Alzheimer
estava sozinho no avião e, ao ouvir o anúncio de que o avião iria
para Lisboa, pediu para sair, pois o seu destino era a cidade de
Faro. Muito tempo foi perdido, enquanto se tentava explicar ao
passageiro que não havia voos diretos para Faro. As aeromoças
perguntavam, com jeito, se ele sabia de alguém que o aguardava em
Lisboa, ou sobre quem o havia trazido ao aeroporto em São Paulo.
Criou-se
um impasse a respeito do que fazer com o passageiro; se ele devia
permanecer no avião ou desembarcar ali mesmo, pois não havia
nenhuma indicação da pessoa que iria apanhá-lo ou orientá-lo em
qualquer das cidades. Enquanto a dúvida sobre o destino do
passageiro desmemoriado persistia, vi entrar um grupo de paramédicos,
dirigindo-se à cabine de comando e de lá sair com um dos copilotos
numa maca; ele tinha sofrido um enfarte. Talvez a falta de memória
do passageiro tenha salvado a vida do piloto, que pôde ser atendido
ainda em terra.
Tão
logo o avião saiu, sem o copiloto e sem o velho com Alzheimer a
bordo, eu, que havia guardado a tarefa de anotar o que iria falar em
Lisboa — como sempre de última hora —, posterguei mais uma vez
minha obrigação e coloquei-me a anotar pontos para um possível
romance. Marcado pelos acontecimentos que presenciara, eu já tinha
um bom começo para o meu “primeiro romance”: um passageiro com
Alzheimer sozinho dentro de um avião. O tempo, porém, mostrou-me
não só que não tenho a capacidade para escrever romances, mas
também que, mesmo em um conto, a história não poderia ser narrada
por completo. Publiquei-a no livro Linguagem
de sinais,
que abre com essa história. Tive que tirar do texto final o episódio
do enfarte do copiloto e o heroísmo involuntário do senhor com
Alzheimer. Transportada para a ficção, a realidade pareceria
totalmente implausível.
Para
construir a ficção, o escritor precisa se ausentar desde o
princípio. Mesmo o mais realista dos autores foge da realidade para
descrevê-la. Senta em frente a um teclado, ou com seu caderno de
anotações, e se distrai por completo, aliena-se do mundo que o
cerca, talvez até para melhor compreendê-lo. Ou simplesmente para
criar outra realidade, diversa. No caminho dessa alienação há
ainda muitos outros pecados: a dissimulação da ignorância, o
egocentrismo da própria literatura que se exibe o tempo todo, mesmo
que à revelia do autor e até a tal ausência que, em essência, não
dignifica o homem. É tanta maldade para uma só profissão que terei
de guardar espaço para um próximo post. Meu Deus, a literatura de
fato não presta!
Luiz
Schwarcz, in www.blogdacompanhia.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário