– Boa
tarde, o senhor me desculpe eu estar interrompendo sua leitura, mas é
só um minutinho.
– Ah,
pois não.
– É
o seguinte, não é o senhor que é o escritor? O menino ali me disse
que o senhor é o escritor.
– Bem,
não sei se sou o escritor. Mas sou um escritor, sou, sim.
–
Madalena,
venha cá, é ele! Madalena! Chame Rosalvo e os meninos, é ele!
– O
que foi que houve?
–
Madalena
é minha esposa, ela estava com vergonha de perguntar se era o senhor
mesmo o escritor. Ela me disse que já tinha ouvido muito falar no
senhor. E Rosalvo é meu cunhado, que conhece sua obra, é gente boa.
– Sim,
eu...
– Não
vou interromper nada, pode ficar descansado, o senhor pode continuar
com sua leitura.
– Eu...
–
Madalena,
é ele mesmo! Você tinha razão, é ele. É boa gente, você sabe?
Estamos aqui numa prosa ótima, ele é a simplicidade em pessoa. Olha
aí, Rosalvo, é ele. Pode sentar, rapaz, ele não morde, há-há!
– Muito
prazer, dá licença.
– Eu...
– Meu
nome é Rosalvo Luiz da Anunciação Pereira, mas eu costumo assinar
apenas Anunciação Pereira.
– Ah,
sim, interessante.
–
Admiro
muito sua obra, O
Sargento de Milícias.
– Mas
não fui eu quem escreveu esse, foi outro. Bem que podia ter sido eu,
mas não fui eu.
– Ah,
então o senhor não é autor do “Sargento”?
– Sou,
mas de outro sargento, o Sargento
Getúlio.
– Ah,
mas é claro, que besteira minha. O
Sargento de Milícias
é de Lima Duarte, não é?
– Lima
Duarte? O Sargento...
– Sim,
Lima Duarte, do Policarpo
Quaresma,
grande autor, para mim maior do que Machado de Assis.
– Lima
Barreto.
– Sim,
claro, claro, Lima Barreto, eu sempre confundo, Lima Duarte é outro.
– E
não foi Lima Barreto que escreveu O
Sargento de Milícias.
– E
quem foi?
–
Manoel
Ant... Deixa pra lá, tudo bem, Seu Rosalvo.
– Pelo
amor de Deus, nada de formalidades, que é isso de “Seu Rosalvo”,
os amigos a gente trata pelo nome.
– Muito
obrigado, gentileza sua.
– Que
é isso que você está bebendo aí, posso dar uma cheiradinha? Ah,
isso é caju! De hoje que eu não tomo uma batida de caju, vou pedir
uma também enquanto a gente conversa, é coisa pouca, não vou tomar
seu tempo, eu sei que você é um homem ocupado e precisa ler o
jornal para estar por dentro do que acontece, o escritor tem de estar
informado.
– Pois
é, eu...
–
Madalena,
peça uma batida de caju no boteco e traga uns acarajés, uns abarás,
uns tira-gostos, umas coisinhas. Quem bebe tem que comer, não é
não?
– É,
mas eu, pessoalmente, quando estou bebendo...
– Não
vou tomar seu tempo, vou direto ao assunto. Eu também sou escritor.
– Ah,
que bom, eu...
– Mas
até hoje só publiquei um livro, que eu mesmo custeei, um livro de
poemas em prosa e mais alguns escritos que eu reuni. Se eu soubesse
que ia lhe encontrar aqui, eu lhe trazia um exemplar. Chama-se
Retalhos de Mim.
Não quero ser imodesto, mas muita gente boa... Não sei se você
conhece o professor Martinho Lobo, conhece o professor Martinho Lobo?
– Não,
infelizmente não, eu...
– Não
conhece Martinho Lobo, da Academia de Odontólogos Escritores, que
foi muitos anos professor de português no Central?
– Não,
infelizmente...
– Bem,
eu vou lhe mandar a cópia de um artigo que Martinho Lobo escreveu na
Gazeta de Ipiaú a respeito desse livro meu, você vai ver que
comentário interessante, ele foi muito feliz nas observações dele.
– Sim,
mas eu...
– Ah,
chegou o acarajé! O acarajé dessa baiana é uma beleza, é um dos
melhores que eu já provei.
– Eu
sei, eu conheço essa baiana desde menino.
– Ah,
sim, claro. Com pimenta ou sem pimenta?
– Não,
obrigado, eu detesto comer quando estou bebendo. Aliás, eu...
– Abará
então? Hum, esse abará...
– Eu...
– Vou
direto ao assunto, não quero tomar seu tempo. Para onde é que eu
posso mandar uns originais que eu queria que você lesse? São 29
peças curtas, que eu prefiro não rotular, são pedaços de minha
vida, de minha sensibilidade. Alguns você poderia chamar de contos.
Não sei se você conhece aquela frase de Edgard de Andrade que diz
que o conto é tudo aquilo que se chama de conto, conhece essa frase?
– Eu...
– Pois
é, mas eu não quis chamar de contos, preferi não dar nome, chega
de rótulos, de fórmulas, de coisas preestabelecidas, precisamos
inovar a literatura, você não acha? Agora, se depois que você ler
você achar que eu devo dizer que são contos, você é que sabe,
você é que vai fazer o prefácio, não sou eu.
– Eu
vou fazer o prefácio?
– Eu
já tinha dito a Madalena e a Walter Augusto – Walter Augusto é
meu cunhado, casado aqui com Madalena: eu vou lá conversar com ele e
vou ser logo sincero, vou botar as cartas na mesa. Se eu quero o
prefácio, pra que ficar enrolando, é ou não é? Madalena, me dê a
caneta aí, para eu tomar nota do endereço dele para mandar os
originais. Eu moro aqui na Bahia mesmo, isso chega rápido pelo
correio, amanhã mesmo eu mando, deve estar aqui dois ou três dias
depois, quer dizer, dá para esse prefácio estar pronto daqui para o
outro domingo. Mas você não precisa ter o trabalho de me mandar o
prefácio e me devolver os originais, eu mesmo venho aqui pegar tudo
no próximo fim de semana e assim a gente aproveita para bater outro
papo, depois que discutir o prefácio.
–
Discutir
o prefácio? Eu...
– Agora
está na hora de uma cervejinha. Dê cá seu copo aí, que eu vou
mandar lavar, que agora a gente vai numa lourinha estupidamente
gelada que eu...
– Olha
aqui, meu amigo, eu não vou fazer prefácio nenhum, não quero
discutir nada com o senhor, não suporto mesa atulhada de caranguejo,
folha de banana, farelo de acarajé, resto de vatapá e essa tralha
toda aí e, mais do que tudo, não quero nem vou tomar cerveja
nenhuma, largue meu copo aí, por favor.
– Mas
minha intenção...
– O
senhor vai me dar licença, eu vou embora.
– E
o endereço?
– Que
endereço, rapaz, eu vou lá lhe dar endereço?
– É
isso que acontece, Madalena, o sujeito tem um sucessozinho, vira
medalhão e aí pisa nos outros! Pode ir, pode ir, eu saberei vencer
sozinho! Você já viu que indelicadeza, Madalena, ele age como se
tivesse o rei na barriga, não sei o que ele está pensando que é,
ainda se fosse um escritor importante mesmo, agora um cara desses que
ninguém sabe quem é…
João
Ubaldo Ribeiro, in
Sempre aos
domingos
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