domingo, 27 de março de 2016

O grande clandestino

Eu me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas que velocidade!
Basta ver o estado das coisas depois que desperto: quase todas fora do lugar, ou desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda, alteradas e irreconhecíveis. Se durmo de novo e acordo, repete-se o fenômeno.
Sempre pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!
Eu queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas.
Além do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar o resultado de seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a disfarçar a evidência de suas metamorfoses.
É de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora. Isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele, façamos dele um aliado.
Aí, sim: destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Perde-se até a ideia da morte. Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar.
O tempo fica assim tão escondido dentro de nós, que se tem a impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.
Em verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece pernoitar.
Rói as pedras como o vento, rói os ossos como um cão. O que mais admira é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.
Todos falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta de velocidade, à medida que nos distanciamos de nossas origens. E quase para quando o esperamos na solidão!
Meu mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocá-lo.  Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.
Oh, como se diverte! Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma catedral – tanto faz.
O desagradável é quando de repente se retira de algum objeto ou de alguém. É claro que prossegue depois. Mas deixa sempre uma coisa morta...
Franqueza, nessa hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...
Contudo não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer maneira.
E é até possível que não exista.
Seu propósito evidente é envelhecer o mundo.
Mas a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.
Aníbal Machado, in Cadernos de João

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