Eu
me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego
às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e
passa escondido. Mas que velocidade!
Basta
ver o estado das coisas depois que desperto: quase todas fora do
lugar, ou desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda,
alteradas e irreconhecíveis. Se durmo de novo e acordo, repete-se o
fenômeno.
Sempre
pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!
Eu
queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é
espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas.
Além
do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a
ventania. Só se pode apreciar o resultado de seu trabalho, nunca a
sua maneira de trabalhar.
O
que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao
menos a disfarçar a evidência de suas metamorfoses.
É
de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira
vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora.
Isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos
misturemos com ele, façamos dele um aliado.
Aí,
sim: destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão
se enchendo e esvaziando toda a vida. Perde-se até a ideia da morte.
Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas,
amar, lutar e cantar.
O
tempo fica assim tão escondido dentro de nós, que se tem a
impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.
Em
verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos
horizontes onde parece pernoitar.
Rói
as pedras como o vento, rói os ossos como um cão. O que mais admira
é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.
Todos
falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que
aumenta de velocidade, à medida que nos distanciamos de nossas
origens. E quase para quando o esperamos na solidão!
Meu
mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego
quase a tocá-lo. Fico horas à janela vendo-o passar. É um
vício.
Oh,
como se diverte! Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma
instituição, uma catedral – tanto faz.
O
desagradável é quando de repente se retira de algum objeto ou de
alguém. É claro que prossegue depois. Mas deixa sempre uma coisa
morta...
Franqueza,
nessa hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...
Contudo
não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de
qualquer maneira.
E
é até possível que não exista.
Seu
propósito evidente é envelhecer o mundo.
Mas
a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.
Aníbal
Machado, in Cadernos de João
Nenhum comentário:
Postar um comentário