segunda-feira, 21 de março de 2016

Nem parecia o mesmo morto

Fotograma do filme 

Foi assim que Vanda, à tarde, encontrou-se a sós com o cadáver do pai. Os ruídos de uma vida pobre e intensa, desenvolvendo-se pela ladeira, mal chegavam ao terceiro andar do cortiço onde o morto repousava após a canseira da mudança de roupa. Os homens da empresa funerária haviam feito bom trabalho, eram competentes e treinados. Como disse o santeiro, ao passar um instante para ver como as coisas se apresentavam, nem parecia o mesmo morto. Penteado, barbeado, vestido de negro, camisa alva e gravata, sapatos lustrosos, era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no caixão funerário – um caixão régio (constatou satisfeita Vanda), de alças douradas, com uns babados nas bordas. Haviam improvisado com tábuas e tripés de madeira uma espécie de mesa e nela elevava-se o esquife, nobre e severo. Duas velas enormes – círios de altar-mor, orgulhou-se Vanda – lançavam uma chama débil, pois a luz da Bahia entrava pela janela e enchia o quarto de claridade. Tanta luz do sol, tanta alegre claridade, pareceram a Vanda uma desconsideração para com a morte, faziam as velas inúteis, tiravam-lhe o brilho augusto. Por um momento pensou em apagá-las, medida de economia. Mas, como certamente a empresa cobraria a mesma coisa gastassem duas ou dez velas, decidiu fechar a janela e a penumbra fez-se no quarto, saltaram as chamas bentas como línguas de fogo. Vanda sentou-se numa cadeira (empréstimo do santeiro), sentia-se satisfeita. Não a simples satisfação do dever filial cumprido, algo mais profundo.
Um suspiro de satisfação escapou-se-lhe do peito. Ajeitou os cabelos castanhos com as mãos, era como se houvesse finalmente domado Quincas, como se lhe houvesse de novo posto as rédeas, aquelas que ele arrancara um dia das mãos fortes de Otacília, rindo-lhe na cara. A sombra de um sorriso aflorou nos lábios de Vanda, que seriam belos e desejáveis não fosse certa rígida dureza a marcá-los. Sentia-se vingada de tudo quanto Quincas fizera a família sofrer, sobretudo a ela própria e a Otacília. Aquela humilhação de anos e anos. Dez anos levara Joaquim essa vida absurda. Rei dos vagabundos da Bahia, escreviam sobre ele nas colunas policiais das gazetas, tipo de rua citado em crônicas de literatos ávidos de fácil pitoresco, dez anos envergonhando a família, salpicando-a com a lama daquela inconfessável celebridade. O cachaceiro-mor de Salvador, o filósofo esfarrapado da rampa do Mercado, o senador das gafieiras, Quincas Berro Dágua, o vagabundo por excelência, eis como o tratavam nos jornais, onde por vezes sua sórdida fotografia era estampada. Meu Deus!, quanto pode uma filha sofrer no mundo quando o destino lhe reserva a cruz de um pai sem consciência de seus deveres.
Mas agora sentia-se contente: olhando o cadáver no caixão quase luxuoso, de roupa negra e mãos cruzadas no peito, numa atitude de devota compunção. As chamas das velas elevavam-se, faziam brilhar os sapatos novos. Tudo decente, menos o quarto, é claro. Um consolo para quem tanto se amofinara e sofrera. Vanda pensou que Otacília sentir-se-ia feliz no distante círculo do universo onde se encontrasse. Porque se impunha finalmente sua vontade, a filha devotada restaurara Joaquim Soares da Cunha, aquele bom, tímido e obediente esposo e pai: bastava levantar a voz e fechar o rosto para tê-lo cordato e conciliador. Ali estava, de mãos cruzadas sobre o peito. Para sempre desaparecera o vagabundo, o rei da gafieira, o patriarca da zona do baixo meretrício. Pena que ele estivesse morto e não pudesse ver-se ao espelho, não pudesse constatar a vitória da filha, da digna família ultrajada.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua

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