Fotograma do filme
Foi
assim que Vanda, à tarde, encontrou-se a sós com o cadáver do pai.
Os ruídos de uma vida pobre e intensa, desenvolvendo-se pela
ladeira, mal chegavam ao terceiro andar do cortiço onde o morto
repousava após a canseira da mudança de roupa. Os homens da empresa
funerária haviam feito bom trabalho, eram competentes e treinados.
Como disse o santeiro, ao passar um instante para ver como as coisas
se apresentavam, nem parecia o mesmo morto. Penteado,
barbeado, vestido de negro, camisa alva e gravata, sapatos lustrosos,
era realmente Joaquim Soares da Cunha quem descansava no caixão
funerário – um caixão régio (constatou satisfeita Vanda), de
alças douradas, com uns babados nas bordas. Haviam improvisado com
tábuas e tripés de madeira uma espécie de mesa e nela elevava-se o
esquife, nobre e severo. Duas velas enormes – círios de altar-mor,
orgulhou-se Vanda – lançavam uma chama débil, pois a luz da Bahia
entrava pela janela e enchia o quarto de claridade. Tanta luz do sol,
tanta alegre claridade, pareceram a Vanda uma desconsideração para
com a morte, faziam as velas inúteis, tiravam-lhe o brilho augusto.
Por um momento pensou em apagá-las, medida de economia. Mas, como
certamente a empresa cobraria a mesma coisa gastassem duas ou dez
velas, decidiu fechar a janela e a penumbra fez-se no quarto,
saltaram as chamas bentas como línguas de fogo. Vanda sentou-se numa
cadeira (empréstimo do santeiro), sentia-se satisfeita. Não a
simples satisfação do dever filial cumprido, algo mais profundo.
Um
suspiro de satisfação escapou-se-lhe do peito. Ajeitou os cabelos
castanhos com as mãos, era como se houvesse finalmente domado
Quincas, como se lhe houvesse de novo posto as rédeas, aquelas que
ele arrancara um dia das mãos fortes de Otacília, rindo-lhe na
cara. A sombra de um sorriso aflorou nos lábios de Vanda, que seriam
belos e desejáveis não fosse certa rígida dureza a marcá-los.
Sentia-se vingada de tudo quanto Quincas fizera a família sofrer,
sobretudo a ela própria e a Otacília. Aquela humilhação de anos e
anos. Dez anos levara Joaquim essa vida absurda. Rei dos
vagabundos da Bahia, escreviam sobre ele nas colunas policiais
das gazetas, tipo de rua citado em crônicas de literatos ávidos de
fácil pitoresco, dez anos envergonhando a família, salpicando-a com
a lama daquela inconfessável celebridade. O
cachaceiro-mor de Salvador, o filósofo esfarrapado da rampa do
Mercado, o senador das gafieiras, Quincas Berro Dágua, o
vagabundo por excelência, eis como o tratavam nos jornais,
onde por vezes sua sórdida fotografia era estampada. Meu Deus!,
quanto pode uma filha sofrer no mundo quando o destino lhe reserva a
cruz de um pai sem consciência de seus deveres.
Mas
agora sentia-se contente: olhando o cadáver no caixão quase
luxuoso, de roupa negra e mãos cruzadas no peito, numa atitude de
devota compunção. As chamas das velas elevavam-se, faziam brilhar
os sapatos novos. Tudo decente, menos o quarto, é claro. Um consolo
para quem tanto se amofinara e sofrera. Vanda pensou que Otacília
sentir-se-ia feliz no distante círculo do universo onde se
encontrasse. Porque se impunha finalmente sua vontade, a filha
devotada restaurara Joaquim Soares da Cunha, aquele bom, tímido e
obediente esposo e pai: bastava levantar a voz e fechar o rosto para
tê-lo cordato e conciliador. Ali estava, de mãos cruzadas sobre o
peito. Para sempre desaparecera o vagabundo, o rei da gafieira, o
patriarca da zona do baixo meretrício. Pena que ele estivesse
morto e não pudesse ver-se ao espelho, não pudesse constatar a
vitória da filha, da digna família ultrajada.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
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