domingo, 27 de março de 2016

De que ri a Mona Lisa?

Mona Lisa, de Leonardo da Vinci

Estou na Sala Da Vinci, no Louvre. Aqui penetrei encaminhado por uma seta que dizia Estou na Sala Da Vinci, no Louvre. Aqui penetrei encaminhado por uma seta que dizia “Sala Da Vinci”. É como se fosse uma indicação para uma grande avenida no trânsito de uma cidade. Não que a seta seja apelativa ou extraordinária. Mas reconheço que nela está escrito implicitamente algo mais. E como se sob aquelas letras estivesse inscrito: “Preparem o seu coração para um encontro histórico com a Gioconda e seu indecifrável sorriso”. E tanto é assim que as pessoas desembocam nesta sala e estacionam diante de um único quadro o da Mona Lisa.
Do lado esquerdo da Gioconda, dezesseis quadros de renascentistas de primeiro time. Do lado direito, dez quadros de Rafael, Andrea del Sarto e outros. E na frente, mais dez Ticianos, além de Veroneses, Tintorettos e vários outros quadros do próprio Da Vinci.
Mas não adianta, ninguém os olha.
Estou fascinado com este ritual. E escandalizado com o que a informação dirigida faz com a gente. Agora, por exemplo, acabou de acorrer aos pés da Mona Lisa um grupo de japoneses: caladinhos, comportadinhos, agrupadinhos diante do quadro. A guia fala-fala-fala e eles tiram-tiram-tiram fotos num plic-plic-plic de câmeras sem flash. Sim, que é proibido foto com flash, conforme está desenhado num cartaz para qualquer um entender.
E lá se foram os japoneses. A guia os arrastou para fora da sala e não os deixou ver nenhum outro quadro. E assim pessoas vão chegando sem se dar conta de que sobre a porta de entrada há um gigantesco Veronese,Bodas de Caná. E singularíssimo, porque o veneziano misturou a festa de Caná com a “última ceia”. Cristo está lá no meio da mesa, num cenário greco-romano. O pintor colocou a escravaria no plano superior da tela e ali há uma festança com a presença até de animais.
Entrou agora na sala outro grupo. São espanhóis e italianos. “Veja só os olhos dela”, diz um à sua esposa, exibindo o original senso crítico. “De qualquer lado que se olha, ela nos olha”, diz outro parecendo ainda mais esperto. “Mas, que sorriso!”, acrescenta outro ainda. E se vão.
Ao lado esquerdo da Mona Lisa reencontro-me com dois quadros de Da Vinci. Mas como as pessoas não foram treinadas para se extasiar diante deles, são deixados inteiramente para mim. São A Virgem dos Rochedos e São João Batista. Este último me intriga particularmente. É que este São João assim andrógino tem uma graça especial. E mais: tem o rosto muito semelhante ao de Santa Ana, do quadro Santa Ana, a Virgem e o Menino, no qual Freud andou vendo coisas tão fantásticas, que se não explicam o quadro pelo menos mostram como o psicanalista era imaginoso.
Chegou um bando de garotos ingleses-escoceses-irlandeses, vermelhinhos, agitadinhos, de uniforme. Também foram postos diante da Mona Lisa como diante do retrato de um ancestral importante. Só diante dela. O guia falava entusiasmado como se estivesse ante o quadro de uma batalha. E ele ali, talvez, achando graça da situação.
Enquanto isto ocorre, estou enamorado da Belle Ferroniêre, do próprio Da Vinci, que embora possa ser a própria Mona Lisa de perfil, ninguém olha.
Chegou agora um grupo de jovens surdos-mudos holandeses. Postaram-se ali perplexos, o guia falou com as mãos e foram-se. Chegou um grupo de africanos. E repete-se o ritual. E ali na parede os vários Rafaéis, outros Da Vincis, do lado esquerdo os dezesseis renascentistas de primeira linha, do lado direito os dez quadros de Rafael, Andrea del Sarto e outros e na frente mais dez Ticianos, além dos Veroneses, Tintorettos etc., que ninguém vê.
O ser humano é fascinante. E banal. Vêm para ver. Não veem nem o que veem, nem o que deviam ver Entende-se. Aquele cordão de isolamento em torno da Mona Lisa aumenta a sua sacralidade. E tem um vigia especial. E um alarme especial contra roubo. Quem por ali passou defronte dela acionando sua câmera, pode voltar para a Oceania, Osaka e Alasca com a noção de dever cumprido. Quando disserem que viram a Mona Lisa, serão mais respeitados pelos vizinhos.
Mal entra outro grupo de turistas para repetir o ritual, percebo que a Mona Lisa me olha por sobre o ombro de um deles e sorri realmente.
Agora sei de que ri a Mona Lisa.
Affonso Romano de Sant´Anna

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