Estou
andando pela rua e me aproximo de um estranho que, sem mais nem
menos, saca um estilete comprido e começa a me golpear na barriga.
Sinto a dor, ouço o sujeito dizer entredentes:
Pra
você aprender a não folgar com a mulher dos outros.
Um
sonho, claro. Apenas um sonho que tive. A coisa não acontecerá
desse jeito. É improvável.
O
curioso nesse sonho é que, ao ver o rosto do homem que me desventra,
eu o reconheço. Chico Chagas. O que torna ainda mais improvável que
aconteça nessas circunstâncias. Torna impossível.
Sou
fatalista, acredito em destino.
Afinal,
que outro nome dar à força que me conduziu ao encontro com Chagas?
Acaso? Não, é pouco. Conheci a figura na época em que eu vivia “da
porra dos outros”, como costumava dizer uma puta chamada Magali. Eu
voltava a pé do meu plantão habitual na zona. Já era bem tarde,
uma madrugada escura como breu. No momento em que atravessei a praça,
vi um sujeito sentado sobre o capô de uma Brasília caindo aos
pedaços. Ele me acenou e pediu ajuda para empurrar o carro. Problema
na partida.
Tive
vontade de fotografar Chagas logo de cara. Ele usava botas, calça
social e uma camisa vermelha de mangas compridas, abotoada no
colarinho e nos punhos. Em cima disso tudo, um chapéu preto de
feltro e um rosto ossudo, equino. Seu bigode tinha sido moda nos anos
50 e os olhos boiavam por trás das lentes esverdeadas dos óculos.
Olhos de sapo.
Empurrei
a Brasília. O motor vacilou um pouco, mas, na segunda tentativa,
acabou pegando. Chagas acelerou forte e puxou o afogador. O
escapamento fustigou o ar imóvel com rajadas de fumaça branca. Ele
saiu do carro com a mão estendida.
Francisco
das Chagas, ao seu dispor.
Eu
disse que era Cauby, escutei a pergunta inevitável sobre o cantor e
respondi como sempre, conformado:
É.
A
risada dele faiscou — dois de seus incisivos superiores eram de
ouro. Figuraça.
Tem
alguma coisa que o moço precise, que eu possa fazer?
Imagine,
eu disse. Não foi nada.
Chagas
abriu os braços, abarcou as casas que circundavam a praça, todas
com as luzes apagadas.
Eu
tenho um problema de hérnia, não posso fazer força. Faz um tempão
que estou parado aqui, esperando que apareça alguém. O moço caiu
do céu.
Eu
disse que a cidade dormia cedo.
E
acordava cedo também. Não ia demorar para começar o movimento a
caminho do rio. Às vezes, ao voltar da zona, eu cruzava com eles.
Homens, mulheres e crianças amarfanhados de sono, ainda atordoados
pelo sonho em que se viam colhendo um relâmpago do útero da terra:
a pedra que modificaria suas vidas.
Existe
algum bar aberto por aqui?, Chagas perguntou. Vai ser um prazer pagar
uma bebida pra você.
A
essa hora até a zona já fechou. Tô vindo de lá.
O
ouro dos dentes brilhou outra vez. Eu poderia nunca mais ver aquele
rosto. Pensei na galeria de personagens que vinha colecionando ao
longo do tempo. Chico Chagas era um belíssimo exemplar. Eu não ia
perder aquela oportunidade.
Na
verdade, tem uma coisa que você pode fazer por mim, eu disse.
E
o que é?
Você
posaria para uma foto?
Ele
ergueu a aba do chapéu e fixou em mim os olhos que as lentes
tornavam desproporcionais ao rosto.
O
moço quer tirar meu retrato, é isso?
É.
Chagas
me estudou mais um pouco. Como se tentasse entender que espécie de
maluco tinha diante dele.
Pra
quê?
Expliquei
que era fotógrafo. Ele continuou me fitando, desconfiado.
Não
precisa ser agora, é claro, eu disse. Você pode voltar outra...
Chagas
me interrompeu.
Quer
saber de uma coisa engraçada? Esse é o único favor que eu não
posso fazer.
Marçal
Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos
lábios
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