quarta-feira, 16 de março de 2016

Chico Chagas

Estou andando pela rua e me aproximo de um estranho que, sem mais nem menos, saca um estilete comprido e começa a me golpear na barriga. Sinto a dor, ouço o sujeito dizer entredentes:
Pra você aprender a não folgar com a mulher dos outros.
Um sonho, claro. Apenas um sonho que tive. A coisa não acontecerá desse jeito. É improvável.
O curioso nesse sonho é que, ao ver o rosto do homem que me desventra, eu o reconheço. Chico Chagas. O que torna ainda mais improvável que aconteça nessas circunstâncias. Torna impossível.
Sou fatalista, acredito em destino.
Afinal, que outro nome dar à força que me conduziu ao encontro com Chagas? Acaso? Não, é pouco. Conheci a figura na época em que eu vivia “da porra dos outros”, como costumava dizer uma puta chamada Magali. Eu voltava a pé do meu plantão habitual na zona. Já era bem tarde, uma madrugada escura como breu. No momento em que atravessei a praça, vi um sujeito sentado sobre o capô de uma Brasília caindo aos pedaços. Ele me acenou e pediu ajuda para empurrar o carro. Problema na partida.
Tive vontade de fotografar Chagas logo de cara. Ele usava botas, calça social e uma camisa vermelha de mangas compridas, abotoada no colarinho e nos punhos. Em cima disso tudo, um chapéu preto de feltro e um rosto ossudo, equino. Seu bigode tinha sido moda nos anos 50 e os olhos boiavam por trás das lentes esverdeadas dos óculos. Olhos de sapo.
Empurrei a Brasília. O motor vacilou um pouco, mas, na segunda tentativa, acabou pegando. Chagas acelerou forte e puxou o afogador. O escapamento fustigou o ar imóvel com rajadas de fumaça branca. Ele saiu do carro com a mão estendida.
Francisco das Chagas, ao seu dispor.
Eu disse que era Cauby, escutei a pergunta inevitável sobre o cantor e respondi como sempre, conformado:
É.
A risada dele faiscou — dois de seus incisivos superiores eram de ouro. Figuraça.
Tem alguma coisa que o moço precise, que eu possa fazer?
Imagine, eu disse. Não foi nada.
Chagas abriu os braços, abarcou as casas que circundavam a praça, todas com as luzes apagadas.
Eu tenho um problema de hérnia, não posso fazer força. Faz um tempão que estou parado aqui, esperando que apareça alguém. O moço caiu do céu.
Eu disse que a cidade dormia cedo.
E acordava cedo também. Não ia demorar para começar o movimento a caminho do rio. Às vezes, ao voltar da zona, eu cruzava com eles. Homens, mulheres e crianças amarfanhados de sono, ainda atordoados pelo sonho em que se viam colhendo um relâmpago do útero da terra: a pedra que modificaria suas vidas.
Existe algum bar aberto por aqui?, Chagas perguntou. Vai ser um prazer pagar uma bebida pra você.
A essa hora até a zona já fechou. Tô vindo de lá.
O ouro dos dentes brilhou outra vez. Eu poderia nunca mais ver aquele rosto. Pensei na galeria de personagens que vinha colecionando ao longo do tempo. Chico Chagas era um belíssimo exemplar. Eu não ia perder aquela oportunidade.
Na verdade, tem uma coisa que você pode fazer por mim, eu disse.
E o que é?
Você posaria para uma foto?
Ele ergueu a aba do chapéu e fixou em mim os olhos que as lentes tornavam desproporcionais ao rosto.
O moço quer tirar meu retrato, é isso?
É.
Chagas me estudou mais um pouco. Como se tentasse entender que espécie de maluco tinha diante dele.
Pra quê?
Expliquei que era fotógrafo. Ele continuou me fitando, desconfiado.
Não precisa ser agora, é claro, eu disse. Você pode voltar outra...
Chagas me interrompeu.
Quer saber de uma coisa engraçada? Esse é o único favor que eu não posso fazer.
Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

Nenhum comentário:

Postar um comentário