sábado, 13 de fevereiro de 2016

O esperado

Eu nasci no dia da invenção de Santa Cruz e por isso me puseram o nome de Maria, Maria de la Cruz. Foi aos 12 anos justos, no dia de meu aniversário, que a planta cresceu e brotaram nela os frutos amarelos e falou comigo. E na noite desse dia sonhei o sonho bonito e no dia seguinte me trouxeram para a cidade. Foi no ano 68 que me trouxeram, para cuidar das crianças. E naquela casa da rua Obispo fiquei 30 anos vendo passar os homens e os cavalos por trás das grades das janelas. Eram tempos de Espanha e, por mais pobre que fosse um branco, nenhum negro ou negra podia olhá-lo.
Eu nunca soube se fui vendida ou dada de presente. Porque muitos negrinhos eram dados de presente, entregues numa bandeja: era uma festa de casamento, soava um golpe de aldraba na porta e então entregavam um negrinho pelado, com umas fitonas coloridas penduradas na bandeja de prata. Mas eu já era crescida quando me trouxeram para cá, e a planta já tinha falado para mim e eu já tinha tido o sonho.
Os amos me arrancaram um colar que eu tinha trazido comigo da plantação, um colar grandíssimo, de sementes de peônias. As peônias têm duas caras, uma cara vermelha, grande, e outra cara negra, mais escondida. As peônias, como as máscaras de Elegguá, têm a vida e têm a morte. O colar pertencia a Santa Bárbara, era tão lindo, tinha sido presente do moreno velho que tocava o tambor no bembê do engenho. Ele dizia: “Eu toco quando minha mão coça”. Dizia: “Meu tambor acredita em mim, acredita em tudo, tudo. Meu tambor acredita em mim, mesmo quando eu minto”. Ele tocava o tambor e, quando a cerimônia estava boa, a música saía do tambor e se metia nos corpos dos bailarinos e então a música nascia dos corpos dos bailarinos. Ao velho eu contei meu sonho e também as palavras da planta e foi ele quem me disse que eu não ia morrer sem ver o esperado. Me deu o colar para que contasse os anos. Foi esse o colar que me arrancaram. De qualquer maneira, as peônias não teriam dado para contar quase um século.
A vez em que eu descobri a planta, lá no engenho, ela estava pequenininha, e tocaram o sino e eu tive de ir embora correndo. Todos nós conhecíamos o sino de cor, os grandes e os pequenos. Porque antes não havia máquinas. Nem havia carvão. Os negros pequenos com cestas grandes e os negros grandes com cestas enormes fazíamos umas montanhas de bagaço e passávamos o dia inteiro regando o bagaço para que secasse e ardesse bem. As carretas levavam o bagaço e o jogavam na fornalha para que desse fogo e moesse a cana. Os machos trabalhavam mais que nós, as fêmeas. Desde criança, os machos já serviam para guiar os bois das carretas. Havia uma balança muito grande, grande como esta casa, e aí entravam e pesavam as arrobas de cana. Quando tocavam o sino, era preciso chegar. Se não, eram 25 chicotadas nas costas, com a chibata de couro cru. Para castigar as grávidas abriam um buraco e as deitavam com o ventre dentro desse buraco. Depois do chicote pintavam as costas delas com tintura da França. O amo queria todos os anos um negrinho. Ou dois. Se saíam dois, melhor.
Tocava o sino e o maioral nos contava. Os negros grandes estavam muito vigiados, porque fugiam. O capataz trazia cachorros e os soltava nas covas dos índios, onde os negros se escondiam. Depois, batiam neles com couro cru ou cortavam uma orelha.
A plantinha estava no meio de uma clareira e para vê-la era preciso atravessar o matagal. Eu voltei. Morria de medo, mas no dia seguinte voltei. Sozinha. Sentei numa rocha e contemplei a plantinha. O ar estava claríssimo; quando o sol saía, já nos encontrava trabalhando. De um dia para o outro, a planta tinha crescido. Tinha todos os ramos cheios de botões com pontinhas amarelas, inchadas, como se fossem arrebentar, e esse dia eu fazia 12 anos e sentia um calor estranho, que não era de fome, dentro do corpo. Não respondi nada, mas eu estava quieta e mesmo assim estava caminhando. Desde aquele dia, tenho esse poder de caminhar quando quero sem mexer um pé. E essa noite fiquei dormindo no barracão e então de meu corpo brotaram folhas e caracóis. Então eu sabia. Tantos anos que passaram desde os tempos da Espanha e ninguém sabia, mas eu sim. Eu sabia que ele ia chegar. Fiquei quase um século esperando e sabendo. Eu estava esperando por ele mesmo sem conhecê-lo. Sabia que faltava um e que ia chegar para salvar-nos todos.
O dia em que ele chegou, eu estava vestida de branco, um vestido comprido. Só gosto de vestidos longos: acho mais majestoso. Eu ia caminhando e as pessoas comentavam: “Olha, olha”. Todo mundo dizia: “Lá vai”. Ele chegou da serra com uma barba negra e pombas nos ombros. Antes tinham chegado muitos homens, com cabelos compridos e barbas como as dos profetas e disparavam tiros ao ar. Eu o vi chegando e para mim não foi nenhum espanto.
Agora penso na planta e não sei o que terá sido dela. Deve ter continuado a crescer, em algum lugar. Uma vez voltei para buscá-la, mas não a encontrei. Eu tinha entendido tudo que ele me dissera. Mas não sei se depois ele foi um flamboyant, que tem essas flores que se incendeiam. Ou um cupey, que tem folhas para mandar recados, que a gente escreve com um pauzinho e não se apagam. Ou uma guásima, dessas que são boas para dar sombra e para enforcar.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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