Eu
nasci no dia da invenção de Santa Cruz e por isso me puseram o nome
de Maria, Maria de la Cruz. Foi aos 12 anos justos, no dia de meu
aniversário, que a planta cresceu e brotaram nela os frutos amarelos
e falou comigo. E na noite desse dia sonhei o sonho bonito e no dia
seguinte me trouxeram para a cidade. Foi no ano 68 que me trouxeram,
para cuidar das crianças. E naquela casa da rua Obispo fiquei 30
anos vendo passar os homens e os cavalos por trás das grades das
janelas. Eram tempos de Espanha e, por mais pobre que fosse um
branco, nenhum negro ou negra podia olhá-lo.
Eu
nunca soube se fui vendida ou dada de presente. Porque muitos
negrinhos eram dados de presente, entregues numa bandeja: era uma
festa de casamento, soava um golpe de aldraba na porta e então
entregavam um negrinho pelado, com umas fitonas coloridas penduradas
na bandeja de prata. Mas eu já era crescida quando me trouxeram para
cá, e a planta já tinha falado para mim e eu já tinha tido o
sonho.
Os
amos me arrancaram um colar que eu tinha trazido comigo da plantação,
um colar grandíssimo, de sementes de peônias. As peônias têm duas
caras, uma cara vermelha, grande, e outra cara negra, mais escondida.
As peônias, como as máscaras de Elegguá, têm a vida e têm a
morte. O colar pertencia a Santa Bárbara, era tão lindo, tinha sido
presente do moreno velho que tocava o tambor no bembê do engenho.
Ele dizia: “Eu toco quando minha mão coça”. Dizia: “Meu
tambor acredita em mim, acredita em tudo, tudo. Meu tambor acredita
em mim, mesmo quando eu minto”. Ele tocava o tambor e, quando a
cerimônia estava boa, a música saía do tambor e se metia nos
corpos dos bailarinos e então a música nascia dos corpos dos
bailarinos. Ao velho eu contei meu sonho e também as palavras da
planta e foi ele quem me disse que eu não ia morrer sem ver o
esperado. Me deu o colar para que contasse os anos. Foi esse o colar
que me arrancaram. De qualquer maneira, as peônias não teriam dado
para contar quase um século.
A
vez em que eu descobri a planta, lá no engenho, ela estava
pequenininha, e tocaram o sino e eu tive de ir embora correndo. Todos
nós conhecíamos o sino de cor, os grandes e os pequenos. Porque
antes não havia máquinas. Nem havia carvão. Os negros pequenos com
cestas grandes e os negros grandes com cestas enormes fazíamos umas
montanhas de bagaço e passávamos o dia inteiro regando o bagaço
para que secasse e ardesse bem. As carretas levavam o bagaço e o
jogavam na fornalha para que desse fogo e moesse a cana. Os machos
trabalhavam mais que nós, as fêmeas. Desde criança, os machos já
serviam para guiar os bois das carretas. Havia uma balança muito
grande, grande como esta casa, e aí entravam e pesavam as arrobas de
cana. Quando tocavam o sino, era preciso chegar. Se não, eram 25
chicotadas nas costas, com a chibata de couro cru. Para castigar as
grávidas abriam um buraco e as deitavam com o ventre dentro desse
buraco. Depois do chicote pintavam as costas delas com tintura da
França. O amo queria todos os anos um negrinho. Ou dois. Se saíam
dois, melhor.
Tocava
o sino e o maioral nos contava. Os negros grandes estavam muito
vigiados, porque fugiam. O capataz trazia cachorros e os soltava nas
covas dos índios, onde os negros se escondiam. Depois, batiam neles
com couro cru ou cortavam uma orelha.
A
plantinha estava no meio de uma clareira e para vê-la era preciso
atravessar o matagal. Eu voltei. Morria de medo, mas no dia seguinte
voltei. Sozinha. Sentei numa rocha e contemplei a plantinha. O ar
estava claríssimo; quando o sol saía, já nos encontrava
trabalhando. De um dia para o outro, a planta tinha crescido. Tinha
todos os ramos cheios de botões com pontinhas amarelas, inchadas,
como se fossem arrebentar, e esse dia eu fazia 12 anos e sentia um
calor estranho, que não era de fome, dentro do corpo. Não respondi
nada, mas eu estava quieta e mesmo assim estava caminhando. Desde
aquele dia, tenho esse poder de caminhar quando quero sem mexer um
pé. E essa noite fiquei dormindo no barracão e então de meu corpo
brotaram folhas e caracóis. Então eu sabia. Tantos anos que
passaram desde os tempos da Espanha e ninguém sabia, mas eu sim. Eu
sabia que ele ia chegar. Fiquei quase um século esperando e sabendo.
Eu estava esperando por ele mesmo sem conhecê-lo. Sabia que faltava
um e que ia chegar para salvar-nos todos.
O
dia em que ele chegou, eu estava vestida de branco, um vestido
comprido. Só gosto de vestidos longos: acho mais majestoso. Eu ia
caminhando e as pessoas comentavam: “Olha, olha”. Todo mundo
dizia: “Lá vai”. Ele chegou da serra com uma barba negra e
pombas nos ombros. Antes tinham chegado muitos homens, com cabelos
compridos e barbas como as dos profetas e disparavam tiros ao ar. Eu
o vi chegando e para mim não foi nenhum espanto.
Agora
penso na planta e não sei o que terá sido dela. Deve ter continuado
a crescer, em algum lugar. Uma vez voltei para buscá-la, mas não a
encontrei. Eu tinha entendido tudo que ele me dissera. Mas não sei
se depois ele foi um flamboyant, que tem essas flores que se
incendeiam. Ou um cupey, que tem folhas para mandar recados, que a
gente escreve com um pauzinho e não se apagam. Ou uma guásima,
dessas que são boas para dar sombra e para enforcar.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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