segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Poder e sobrevivência (trecho inicial)

Um dos fenômenos mais inquietantes da história do espírito humano é o esquivar-se do concreto. Possuímos uma acentuada tendência a nos lançarmos sempre ao longínquo, indo constantemente de encontro a tudo aquilo que, estando imediatamente à nossa frente, deixamos de ver. O entusiasmo dos gestos, o aventuroso e ousado das expedições a lugares distantes, é ilusório quanto a seus verdadeiros motivos: não raro trata-se simplesmente de evitar aquilo que está mais próximo, porque não nos sentimos à altura dele. Pressentimos sua periculosidade, e preferimos outros perigos, de consistência desconhecida. Mesmo quando deparamos com estes — e estão sempre presentes —, eles têm a seu favor o brilho do repentino e único. Seria necessária muita limitação intelectual para condenar esse espírito aventureiro, ainda que muitas vezes nasça de manifesta fraqueza. Ele nos levou a uma ampliação de nosso horizonte da qual nos orgulhamos. Mas, como todos sabemos, a situação da humanidade hoje é tão séria que somos constrangidos a nos voltar para o que está mais próximo, para o concreto. Não fazemos sequer ideia de quanto tempo nos resta para apreender aquilo que há de mais doloroso, e é bem possível que nosso destino dependa já de determinados e penosos conhecimentos, que ainda não possuímos.
Hoje, pretendo falar de sobrevivência, pensando naturalmente na sobrevivência de outros, e tentarei mostrar que essa sobrevivência está no cerne de tudo aquilo que nós — um tanto vagamente — denominamos poder. Para tanto, gostaria de iniciar com uma observação bastante simples.
O homem em pé dá a impressão de um ser autônomo, como se assim estivesse unicamente por si e tivesse ainda a possibilidade de tomar qualquer decisão. O homem sentado exerce uma certa pressão, seu peso projeta-se para fora, e ele desperta um sentimento de permanência. Sentado, não pode cair, se se levanta, fica maior. Por sua vez, o homem que vai descansar, o homem deitado, encontra-se desarmado. É fácil apanhá-lo em seu sono, indefeso. Mas talvez o homem deitado tenha caído, ou talvez tenha sido ferido. Enquanto não se puser de novo sobre suas pernas, não será considerado um ser completo.
O morto, no entanto, que jamais voltará a se levantar, produz um efeito extraordinário. A primeira impressão daquele que vê um morto diante de si (principalmente se este representava algo para ele, mas não só nesse caso) é a da incredulidade. Com desconfiança, se se tratava de um inimigo, ou trêmulo de expectativa, se um amigo, espreitamos o menor movimento de seu corpo. Ele se moveu, respirou. Não. Não está respirando. Não se move. Está realmente morto. Segue-se então o horror ante o fato da morte, ao qual se poderia denominar o fato único, pois é tão monstruoso que incorpora em si todos os outros fatos. O confronto com o morto é o confronto com a própria morte — menos que isso, porque não morremos realmente; mais, contudo, porque sempre há a morte de outrem. Mesmo o assassino profissional, que confunde sua insensibilidade com coragem e virilidade, não é poupado desse confronto: também ele, em alguma região recôndita de sua natureza, se amedronta. Muito se poderia dizer sobre o efeito da visão do morto no observador, a mais profunda e dignamente humana de todas as “visões”; seria possível passar dias e noites descrevendo-a. O testemunho mais admirável dela é o mais antigo: o pesar do sumério Gilgamesh com a morte de seu amigo Enkidu.
No entanto, não se trata para nós, aqui, desse estágio visível de uma vivência pela qual não temos, como vítimas, de nos envergonhar, e que foi posta à luz pelas religiões; trata-se, antes, do próximo estágio, que não admitimos de bom grado ser mais rico em consequências que o anterior; trata-se, enfim, de um estágio, de forma alguma humanamente digno, que se encontra no coração tanto do poder como da grandiosidade, o qual temos de encarar sem temor nem piedade, se quisermos compreender o que significa o poder e o que ele provoca.
O horror despertado pela morte, tal como esta se apresenta; é dissolvido pelo contentamento: não fomos nós que morremos. Mas poderia ter sido. É o outro, porém, quem jaz. Nós mesmos estamos de pé, intocados e inatingidos; e, seja um inimigo que foi morto, seja um amigo que morreu, tudo parece subitamente como se a morte, pela qual nos vimos ameaçados, tivesse se desviado para outrem.”
Elias Canetti, in A consciência das palavras

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