“Um
dos fenômenos mais inquietantes da história do espírito humano é
o esquivar-se do concreto. Possuímos uma acentuada tendência a nos
lançarmos sempre ao longínquo, indo constantemente de encontro a
tudo aquilo que, estando imediatamente à nossa frente, deixamos de
ver. O entusiasmo dos gestos, o aventuroso e ousado das expedições
a lugares distantes, é ilusório quanto a seus verdadeiros motivos:
não raro trata-se simplesmente de evitar aquilo que está mais
próximo, porque não nos sentimos à altura dele. Pressentimos sua
periculosidade, e preferimos outros perigos, de consistência
desconhecida. Mesmo quando deparamos com estes — e estão sempre
presentes —, eles têm a seu favor o brilho do repentino e único.
Seria necessária muita limitação intelectual para condenar esse
espírito aventureiro, ainda que muitas vezes nasça de manifesta
fraqueza. Ele nos levou a uma ampliação de nosso horizonte da qual
nos orgulhamos. Mas, como todos sabemos, a situação da humanidade
hoje é tão séria que somos constrangidos a nos voltar para o que
está mais próximo, para o concreto. Não fazemos sequer ideia de
quanto tempo nos resta para apreender aquilo que há de mais
doloroso, e é bem possível que nosso destino dependa já de
determinados e penosos conhecimentos, que ainda não possuímos.
Hoje,
pretendo falar de sobrevivência, pensando naturalmente na
sobrevivência de outros, e tentarei mostrar que essa sobrevivência
está no cerne de tudo aquilo que nós — um tanto vagamente —
denominamos poder. Para tanto, gostaria de iniciar com uma observação
bastante simples.
O
homem em pé dá a impressão de um ser autônomo, como se
assim estivesse unicamente por si e tivesse ainda a possibilidade de
tomar qualquer decisão. O homem sentado exerce uma certa
pressão, seu peso projeta-se para fora, e ele desperta um sentimento
de permanência. Sentado, não pode cair, se se levanta, fica maior.
Por sua vez, o homem que vai descansar, o homem deitado,
encontra-se desarmado. É fácil apanhá-lo em seu sono, indefeso.
Mas talvez o homem deitado tenha caído, ou talvez tenha sido ferido.
Enquanto não se puser de novo sobre suas pernas, não será
considerado um ser completo.
O
morto, no entanto, que jamais voltará a se levantar, produz
um efeito extraordinário. A primeira impressão daquele que vê um
morto diante de si (principalmente se este representava algo para
ele, mas não só nesse caso) é a da incredulidade. Com
desconfiança, se se tratava de um inimigo, ou trêmulo de
expectativa, se um amigo, espreitamos o menor movimento de seu corpo.
Ele se moveu, respirou. Não. Não está respirando. Não se move.
Está realmente morto. Segue-se então o horror ante o fato da morte,
ao qual se poderia denominar o fato único, pois é tão monstruoso
que incorpora em si todos os outros fatos. O confronto com o morto é
o confronto com a própria morte — menos que isso, porque não
morremos realmente; mais, contudo, porque sempre há a morte de
outrem. Mesmo o assassino profissional, que confunde sua
insensibilidade com coragem e virilidade, não é poupado desse
confronto: também ele, em alguma região recôndita de sua natureza,
se amedronta. Muito se poderia dizer sobre o efeito da visão do
morto no observador, a mais profunda e dignamente humana de todas as
“visões”; seria possível passar dias e noites descrevendo-a. O
testemunho mais admirável dela é o mais antigo: o pesar do sumério
Gilgamesh com a morte de seu amigo Enkidu.
No
entanto, não se trata para nós, aqui, desse estágio visível de
uma vivência pela qual não temos, como vítimas, de nos
envergonhar, e que foi posta à luz pelas religiões; trata-se,
antes, do próximo estágio, que não admitimos de bom grado ser mais
rico em consequências que o anterior; trata-se, enfim, de um
estágio, de forma alguma humanamente digno, que se encontra no
coração tanto do poder como da grandiosidade, o qual temos de
encarar sem temor nem piedade, se quisermos compreender o que
significa o poder e o que ele provoca.
O
horror despertado pela morte, tal como esta se apresenta; é
dissolvido pelo contentamento: não fomos nós que morremos. Mas
poderia ter sido. É o outro, porém, quem jaz. Nós mesmos estamos
de pé, intocados e inatingidos; e, seja um inimigo que foi morto,
seja um amigo que morreu, tudo parece subitamente como se a morte,
pela qual nos vimos ameaçados, tivesse se desviado para outrem.”
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário