sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O alferes


Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente. E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na baía de Todos os Santos e façam enxamear sobre ele aquelas esferazinhas de ferro e pedra que o matarão com grande dor, furando-lhe um olho, estilhaçando-lhe os ossos da cabeça e obrigando-o a curvar-se abraçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte. No quadro “O alferes Brandão Galvão Perora às Gaivotas”, vê-se que é o 10 de junho de 1822, numa folhinha que singra os ares, portada de um lado pelo bico de uma gaivota e do outro pelo aguço de uma lança envolvida nas cores e insígnias da liberdade. Já mortalmente atingido, erguendo-se com um olho a escorrer pela barba abaixo, ele arengou às gaivotas que, antes distraídas, adejavam sobre os brigues e baleeiras do comandante português Trinta Diabos. Disse-lhes não uma mas muitas frases célebres, na voz trêmula porém estentórea desde então sempre imitada nas salas de aula ou, faltando estas, nas visitas em que é necessário ouvir discursos. Pois, se depois da metralha portuguesa não havia ali mais que as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais, havia o suficiente para que se gravassem para todo o sempre na consciência dos homens as palavras que ele agora pronuncia, embora daqui não se ouçam, nem de mais perto, nem se vejam seus lábios movendo-se, nem se enxergue em seu rosto mais que a expressão perplexa de quem morre sem saber. Mas são palavras nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos do alferes, e são portanto verdadeiras.
Coisas opostas, a glória em vida e a glória na morte, somente esta parece perseguir a alma sempre encarnante do alferes. Do contrário, não estaria ele ali, naquele dia e naquele lugar, podendo ter ido a outra parte qualquer do Recôncavo onde o povo se reunisse para beber e para aclamar o Regente e Imortal Príncipe Dão Pedro, Defensor Perpétuo do Hemisfério Austral. Já finado e herói, com suas cada vez mais alargadas palavras às gaivotas circulando de boca em boca, o alferes não ouviria a alta proclamação que em muitas festas se fez na cidade do Catu, como não veria diversas outras que se seguiram desde o dia pressagioso em que o Senado da Câmara da Bahia, fervendo de ressentimento e ódio porque a Corte embarcara em seus navios para Portugal do mesmo jeito alheio com que chegara, recusou registro à Carta Régia em que se nomeava comandante d’Armas o brigadeiro Inácio Madeira de Melo. O povo brasileiro se levantava contra os portugueses e discursos caudalosos ribombavam pelas paredes das igrejas, boticas e salões onde os conspiradores profetizavam a glória da América Austral, fulcro de esplendor, fortuna e abundância. Em toda parte sagravam-se novos heróis, um a cada dia em cada povoado, às vezes dois ou três, às vezes dúzias, com as notícias de bravuras voando tão rápido quanto as andorinhas que passam o verão na ilha. Assim foi ao arribar ao porto da Bahia a famosa corveta Regeneração, que trazia de volta, agora anistiados, importantes heróis, levados presos por sedição ao castelo de São Jorge, na capital opressora. Envoltos nas brumas da lenda, esses homens do Destino logo dilataram por todas aquelas terras a reputação de seu valor incomparável, a beleza de seu cada gesto, a força certeira de cada coisa dita, o caráter jamais quebrantado por fraqueza humana. E não podia o coração de José Francisco senão bater mais depressa, o queixo tremelicar e a cabeça girar, quando, como se houvesse tambores rufando pelas abas da capa de debruns escarlates, o grande guerreiro tenente João das Botas, passageiro da Regeneração, desembarcou ao pôr do sol para visitar a ilha em segredo e falou a alguns homens que o boticário reunira na Ponta das Baleias. Ouviu dele furente denúncia contra os deputados brasileiros que em Lisboa se tinham oposto à anistia. Mal podendo continuar a respirar, escutou como o Brasil representava a liberdade, a opulência, a justiça e a beleza, negadas até agora pela iniquidade dos portugueses, que tudo de nós queriam e nada davam em troca. Aprendeu a dizer com desprezo o nome de um dos deputados e, mais tarde, já envergando o gibão verde de punhos agaloados que lhe tinha dado a viúva de um anspeçada, sua madrinha cega e velha, já habituado a sentir um aperto no peito ao vislumbrar os milicianos agrupando-se aqui e ali, o nome desse deputado seria a única coisa que saberia dizer nas reuniões da botica. Discursavam quase sempre o boticário e seu frequente visitante, o alto e inspirado orador Sousa Lima, mas os demais podiam arriscar uma palavra ou outra enquanto os grandes revolucionários tomavam fôlego e, assim, cofiando os punhos do gibão e ostentando a barba rala que seus 17 anos lhe conferiam, o alferes Brandão Galvão resmungava com aspereza: Gonçalves Ledo, traidor cobarde! Então, correndo o olhar inconformado pela sala como querendo acompanhar os movimentos de uma mosca aflita, esmurrava o joelho, grunhia uma imprecação ininteligível e voltava a seu silêncio quieto. Agradava-lhe que, apesar de repetir as palavras e gestos quase todas as noites, pois custava a aprender coisas novas e das letras só conhecia as iniciais do apelido, os outros conspiradores o ouvissem sempre como se estivesse dizendo algo muito necessário nunca antes escutado, e alguns lhe ecoassem os resmungos com acenos quase solenes.
João Ubaldo Ribeiro, in Viva o povo brasileiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário