Num
conto que nunca cheguei a publicar acontece o seguinte: uma mulher,
em fase terminal de doença, pede ao marido que lhe conte uma
história para apaziguar as insuportáveis dores. Mal ele inicia a
narração, ela o faz parar:
—
Não,
assim não. Eu quero que me fale numa língua desconhecida.
—
Desconhecida?
— pergunta
ele.
—
Uma
língua que não exista. Que eu preciso tanto de não compreender
nada!
O
marido se interroga: como se pode saber falar uma língua que não
existe? Começa por balbuciar umas palavras estranhas e sente-se
ridículo como se a si mesmo desse provas da incapacidade de ser
humano. Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade nesse idioma
sem regra. E ele já não sabe se fala, se canta, se reza. Quando se
detém, repara que a mulher está adormecida, e mora em seu rosto o
mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela lhe confessa: aqueles
murmúrios lhe trouxeram lembranças de antes de ter memória. E lhe
deram o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que havia antes de
estarmos vivos.
Na
nossa infância, todos nós experimentamos este primeiro idioma, o
idioma do caos, todos nós usufruímos do momento divino em que a
nossa vida podia ser todas as vidas e o mundo ainda esperava por um
destino. James Joyce chamava de “caosmologia” a esta relação
com o mundo informe e caótico. Essa relação, meus amigos, é
aquilo que faz mover a escrita, qualquer que seja o continente,
qualquer que seja a nação, a língua ou o gênero literário.
Mia
Couto,
in E
se Obama fosse africano?
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