Com
a minha mania de andar de táxi, entrevisto todos os choferes com
quem viajo. Uma noite dessas viajei com um espanhol ainda bem moço,
de bigodinho e olhar triste. Conversa vai, conversa vem, ele me
perguntou se eu tinha filhos. Perguntei-lhe se ele também tinha,
respondeu que não era casado, que jamais se casaria. E contou-me sua
história. Há catorze anos amou uma jovem espanhola, na terra dele.
Morava numa cidade pequena, com poucos médicos e recursos. A moça
adoeceu, sem que ninguém soubesse de quê, e em três dias morreu.
Morreu consciente de que ia morrer, predizendo: “Vou morrer em teus
braços.” E morreu nos braços dele, pedindo: “Que Deus me
salve.” O chofer durante três anos mal conseguia se alimentar. Na
cidade pequena todos sabiam de sua paixão e queriam ajudá-lo.
Levavam-no para festas, onde as moças, em vez de esperar que ele as
tirasse para dançar, pediam-lhe para dançar com elas.
Mas
de nada adiantou. O ambiente todo lembrava-lhe Clarita – este é o
nome da moça morta, o que me assustou porque era quase meu nome e
senti-me morta e amada. Então resolveu sair da Espanha e nem avisar
aos pais. Informou-se de que só dois países na época recebiam
imigrantes sem exigir carta de chamada: Brasil e Venezuela.
Decidiu-se pelo Brasil. Aqui enriqueceu. Teve uma fábrica de
sapatos, vendeu-a depois; comprou um bar-restaurante, vendeu-o
depois. É que nada importava. Resolveu transformar seu carro de
passeio em carro de praça e tornou-se chofer. Mora numa casa em
Jacarepaguá, porque “lá tem cachoeiras de água doce (!) que são
lindas”. Mas nesses catorze anos não conseguiu gostar de nenhuma
mulher, e não tem “amor por nada, tudo dá no mesmo para ele”.
Com delicadeza o espanhol deu a entender que no entanto a saudade
diária que sente de Clarita não atrasa sua vida, que ele consegue
ter casos e variar de mulheres.
Mas
amar – nunca mais.
Bom.
Minha história termina de um modo um pouco inesperado e assustador.
Estávamos
quase chegando ao meu ponto de parada, quando ele falou de novo na
sua casa em Jacarepaguá e nas cachoeiras de água doce, como se
existissem de água salgada. Eu disse meio distraída: “Como
gostaria de descansar uns dias num lugar desses.” Pois calha que
era exatamente o que eu não devia ter dito. Porque, sob o risco de
enveredar com o carro por alguma casa adentro, ele subitamente virou
a cabeça para trás e perguntou-me com a voz carregada de intenções:
“A senhora quer mesmo?! Pois pode vir!” Nervosíssima com a
repentina mudança de clima, ouvi-me responder depressa e alto que
não podia porque ia me operar e “ficar muito doente”(!). Dagora
em diante só entrevistarei os choferes bem velhinhos. Mas isso prova
que o espanhol é um homem sincero: a saudade intensa por Clarita não
atrasa mesmo sua vida.
O
final dessa história desilude um pouco os corações sentimentais
Muita gente gostaria que o amor de catorze anos atrasasse e muito a
sua vida. A história ficaria melhor. Mas é que não posso mentir
para agradar vocês. E além do mais acho justo que a vida dele não
fique totalmente atrasada. Já basta o drama de não conseguir amar
ninguém mais.
Esqueci
de dizer que ele também me contou histórias de negócios comerciais
e de desfalques – a viagem era longa, o tráfego péssimo. Mas
encontrou em mim ouvidos distraídos. Só o que se chama de amor
imorredouro tinha me interessado. Agora estou me lembrando vagamente
do desfalque. Talvez, concentrando-me, eu me lembre melhor, e conte
no próximo sábado. Mas acho que não interessa.
Clarice
Lispector,
in A
descoberta do mundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário