domingo, 29 de novembro de 2015

Amor imorredouro

Com a minha mania de andar de táxi, entrevisto todos os choferes com quem viajo. Uma noite dessas viajei com um espanhol ainda bem moço, de bigodinho e olhar triste. Conversa vai, conversa vem, ele me perguntou se eu tinha filhos. Perguntei-lhe se ele também tinha, respondeu que não era casado, que jamais se casaria. E contou-me sua história. Há catorze anos amou uma jovem espanhola, na terra dele. Morava numa cidade pequena, com poucos médicos e recursos. A moça adoeceu, sem que ninguém soubesse de quê, e em três dias morreu. Morreu consciente de que ia morrer, predizendo: “Vou morrer em teus braços.” E morreu nos braços dele, pedindo: “Que Deus me salve.” O chofer durante três anos mal conseguia se alimentar. Na cidade pequena todos sabiam de sua paixão e queriam ajudá-lo. Levavam-no para festas, onde as moças, em vez de esperar que ele as tirasse para dançar, pediam-lhe para dançar com elas.
Mas de nada adiantou. O ambiente todo lembrava-lhe Clarita – este é o nome da moça morta, o que me assustou porque era quase meu nome e senti-me morta e amada. Então resolveu sair da Espanha e nem avisar aos pais. Informou-se de que só dois países na época recebiam imigrantes sem exigir carta de chamada: Brasil e Venezuela. Decidiu-se pelo Brasil. Aqui enriqueceu. Teve uma fábrica de sapatos, vendeu-a depois; comprou um bar-restaurante, vendeu-o depois. É que nada importava. Resolveu transformar seu carro de passeio em carro de praça e tornou-se chofer. Mora numa casa em Jacarepaguá, porque “lá tem cachoeiras de água doce (!) que são lindas”. Mas nesses catorze anos não conseguiu gostar de nenhuma mulher, e não tem “amor por nada, tudo dá no mesmo para ele”. Com delicadeza o espanhol deu a entender que no entanto a saudade diária que sente de Clarita não atrasa sua vida, que ele consegue ter casos e variar de mulheres.
Mas amar – nunca mais.
Bom. Minha história termina de um modo um pouco inesperado e assustador.
Estávamos quase chegando ao meu ponto de parada, quando ele falou de novo na sua casa em Jacarepaguá e nas cachoeiras de água doce, como se existissem de água salgada. Eu disse meio distraída: “Como gostaria de descansar uns dias num lugar desses.” Pois calha que era exatamente o que eu não devia ter dito. Porque, sob o risco de enveredar com o carro por alguma casa adentro, ele subitamente virou a cabeça para trás e perguntou-me com a voz carregada de intenções: “A senhora quer mesmo?! Pois pode vir!” Nervosíssima com a repentina mudança de clima, ouvi-me responder depressa e alto que não podia porque ia me operar e “ficar muito doente”(!). Dagora em diante só entrevistarei os choferes bem velhinhos. Mas isso prova que o espanhol é um homem sincero: a saudade intensa por Clarita não atrasa mesmo sua vida.
O final dessa história desilude um pouco os corações sentimentais Muita gente gostaria que o amor de catorze anos atrasasse e muito a sua vida. A história ficaria melhor. Mas é que não posso mentir para agradar vocês. E além do mais acho justo que a vida dele não fique totalmente atrasada. Já basta o drama de não conseguir amar ninguém mais.
Esqueci de dizer que ele também me contou histórias de negócios comerciais e de desfalques – a viagem era longa, o tráfego péssimo. Mas encontrou em mim ouvidos distraídos. Só o que se chama de amor imorredouro tinha me interessado. Agora estou me lembrando vagamente do desfalque. Talvez, concentrando-me, eu me lembre melhor, e conte no próximo sábado. Mas acho que não interessa.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

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