Haja?
Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, lá em Sete-Lagoas,
para partes de consultar um médico, de nome me indicado. Fui vestido
bem, e em carro de primeira, por via das dúvidas, não me sombrearem
por jagunço antigo. Vai e acontece, que, perto mesmo de mim,
defronte, tomou assento, voltando deste brabo Norte, um moço
Jazevedão, delegado profissional. Vinha com um capanga dele, um
secreta, e eu bem sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o
outro ruim era. A verdade que diga, primeiro tive o estrito de me
desbancar para um longe dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse,
melhor ficasse. Pois, ficando, olhei. E ― lhe falo! nunca vi cara
de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que
era urco, trouxo de atarracado, reluzia um crú nos olhos pequenos, e
armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem testa.
Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a gente
via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava,
um poucadinho. Só rosneava curto, baixo, as meias-palavras
encrespadas. Vinha reolhando, historiando a papelada ― uma a uma as
folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões
de cavalos e criminosos de morte. Aquela aplicação de trabalho,
numa coisa dessas, gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo
perto, sentado junto, atendendo, caprichando de ser cão. Me fez um
receio, mas só no bobo do corpo, não no interno das coragens. Uma
hora, uma daquelas laudas caiu ― e eu me abaixei depressa, sei lá
mesmo por quê, não quis, não pensei ― até hoje crio vergonha
disso ― apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo! eu
tive mais raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem
nem me olhou, nem disse nenhum agradecimento. Até as solas dos
sapatos dele ― só vendo ― que solas duras grossas, dobradas de
enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia! esse Jazevedão,
quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que
vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava
em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões dava
gargalhadas, dava... Pois, osga! Entreguei a ele a folha de papel, e
fui saindo de lá, por ter mão em mim de não destruir a tiros
aquele sujeito. Carnes que muito pesavam... E ele umbigava um
princípio de barriga barriguda, que me criou desejos... Com minha
brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades que esse
delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para
poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue,
por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe:
sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo,
quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de
metal...
Tanto,
digo: Jazevedão ― um assim, devia de ter, precisava? Ah , precisa.
Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que, depois ―
negócio particular dele ― nesta vida ou na outra, cada Jazevedão,
cumprido o que tinha, descamba em seu tempo de penar, também, até
pagar o que deveu ― compadre meu Quelemém está aí, para
fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que é viver... Mas só do modo,
desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou. Senhor
pensa que Antônio Dó ou Olivino Oliviano iam ficar bonzinhos por
pura soletração de si, ou por rogo dos infelizes, ou por sempre
ouvir sermão de padre? Te acho! Nos visos…
Fala
de Riobaldo, in Grande sertão: veredas, de Guimarães
Rosa
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