sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Fui alfabetizado nas paredes da casa de meu avô

Bartolomeu Campos de Queirós no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias

Nasci em uma cidade pequenininha no interior de Minas Gerais. Era uma cidade que tinha três ruas. A rua de cima, a de baixo e a do meio. Hoje o poder público já chegou lá, e a rua de cima agora se chama Visconde do Rio Branco. A do meio, Juscelino Kubitschek; e a outra, Benedito Valadares. O poder público entra e tira aquilo que o povo criou e põe o nome que ele inventa, pois precisa homenagear alguém, independentemente da cultura daquela gente.
Quando nasci (em 1944), devia ter uns cinco mil habitantes. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe era uma leitora, uma grande leitora e dona de casa.
Devo o meu gosto pela palavra também ao meu avô. Talvez ele tenha me alfabetizado. Meu avô morava em Pitangui, uma cidade perto de Papagaio, ganhou a sorte grande na loteria e nunca mais trabalhou. Ele cultivou uma preguiça absoluta. Levantava pela manhã, vestia terno, gravata e se debruçava na janela. Todo mundo que passava falava: “Ô, seu Queirós!”. Ele falava: “Tem dó de nós”. Só isso. O dia inteiro.
Tudo o que acontecia na cidade, ele escrevia nas paredes de casa. Quem morreu, quem matou, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado nas paredes do meu avô. Eu perguntava que palavra é essa, que palavra é aquela. Eu escrevia no muro a palavra com carvão, repetia. Ele ia lá para ver se estava certo. Na parede da casa dele, somente ele podia escrever. Eu só podia escrever no muro. Esse meu avô tinha um gosto absoluto pela palavra e era muito irreverente. Eu era o grande amigo dele. Ele falava algumas coisas comigo, ele tinha umas coisas interessantes e que ficaram.
Em frente à casa dele moravam três moças solteiras. Maria da Fé, Maria da Esperança e Maria da Caridade. Eu sabia quando elas passavam na rua porque o meu avô falava três vezes: “Tem dó de nós, tem dó de nós, tem dó de nós”. A Esperança morreu e o meu avô me falou: “Quem disse que a Esperança é a última que morre?”.
Quando o cinema foi inaugurado, era um galpão muito grande, com um lençol no meio. Quem era alfabetizado via o filme de frente porque não podia botar o lençol no fundo do barracão, pois desfocava a imagem. O lençol ficava no meio. Os alfabetizados ficavam na frente e liam. Os analfabetos ficavam atrás do lençol e pagavam meio ingresso. Viam o filme ao contrário, mas a legenda não era problema. Ninguém lia. E o meu avô falava: “Na terra de cego quem abre cinema é doido”.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Palestra no Teatro do Paiol, Curitiba

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