quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A presença

http://www.mmo.co.mz/wp-content/uploads/2013/02/telefone1.jpg 

Um telefonema apenas cordial, a que atendo com naturalidade — mas por que, depois, esse indefinível tremor íntimo, essa remota noção de que representei uma cena sob o efeito do hipnotismo, esse indizível susto? Sou um homem tranquilo, e minha vida está tranquila; ouço essa voz, esse nome, e pronto! — começo a agir como se eu trabalhasse em um filme a que eu mesmo estivesse assistindo. Represento meu papel de maneira normal e faço o papel de um homem normal; mas há um outro eu invisível que é aqualouco, patinador sobre arco-íris, menino tonto, Hamlet, palerma, patético. Enquanto eu digo uma coisa sensata esse meu fantasma se entrega a um silencioso desvario, ou recita versos antigos, voa como um anjo, soluça. Posso contemplá-lo com frieza, criticá-lo, ter pena dele; evito que ele influa no mais mínimo em minha conduta real; quando ele tem um impulso de falar ao telefone eu me ponho tranquilamente a descascar uma laranja ou fazer ponta em um lápis; e sem minhas mãos, sem meu corpo, ele não pode fazer nada. Resolvo ignorá-lo e chego a esquecê-lo durante semanas, meses; mas quando surge a Presença ele salta ao meu lado, sob uma luz sobrenatural, absurdo e infantil.
Não estou apaixonado; meu comércio sentimental com as outras criaturas corre normal, com suas alegrias e tristezas. Não estou apaixonado, mas posso ver a face da Paixão. E por um instante fico parado, mudo, como quem ouvisse, no fundo da noite, o sussurro das estrelas, e o reconhecesse.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

Nenhum comentário:

Postar um comentário