Um
telefonema apenas cordial, a que atendo com naturalidade — mas por
que, depois, esse indefinível tremor íntimo, essa remota noção de
que representei uma cena sob o efeito do hipnotismo, esse indizível
susto? Sou um homem tranquilo, e minha vida está tranquila; ouço
essa voz, esse nome, e pronto! — começo a agir como se eu
trabalhasse em um filme a que eu mesmo estivesse assistindo.
Represento meu papel de maneira normal e faço o papel de um homem
normal; mas há um outro eu invisível que é aqualouco, patinador
sobre arco-íris, menino tonto, Hamlet, palerma, patético. Enquanto
eu digo uma coisa sensata esse meu fantasma se entrega a um
silencioso desvario, ou recita versos antigos, voa como um anjo,
soluça. Posso contemplá-lo com frieza, criticá-lo, ter pena dele;
evito que ele influa no mais mínimo em minha conduta real; quando
ele tem um impulso de falar ao telefone eu me ponho tranquilamente a
descascar uma laranja ou fazer ponta em um lápis; e sem minhas mãos,
sem meu corpo, ele não pode fazer nada. Resolvo ignorá-lo e chego a
esquecê-lo durante semanas, meses; mas quando surge a Presença ele
salta ao meu lado, sob uma luz sobrenatural, absurdo e infantil.
Não
estou apaixonado; meu comércio sentimental com as outras criaturas
corre normal, com suas alegrias e tristezas. Não estou apaixonado,
mas posso ver a face da Paixão. E por um instante fico parado, mudo,
como quem ouvisse, no fundo da noite, o sussurro das estrelas, e o
reconhecesse.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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