Sarita
olhava distraída o trânsito colorido que descia pela Avenida N. S.
de Copacabana. Aquele rio de carros que corria em direção ao centro
da cidade e ali engrossava depois de receber todos os seus afluentes
os carros que vinham do Leblon, via Posto 6, os que vinham de
Ipanema, via Lagoa, os que vinham do Bairro Peixoto e das muitas ruas
transversais.
Acendeu
um cigarro já impaciente e continuou na janela. Estava no oitavo
andar de um edifício do Lido, onde o eminente Dr. Teódulo de
Carvalho tinha o seu consultório e sua clínica; uma clínica muito
bem montada para padronizar os narizes de moças ricas que tinham em
seus respectivos apêndices nasais o centro de seus complexos, ou
para esticar as pelancas de velhotas ociosas para as quais a velhice
era um fantasma constante, muito mais constante durante o dia, quando
suas rugas eram mais evidentes, do que durante a noite, quando
costumam ser mais constantes os fantasmas de um modo geral. Em suma:
o Dr. Teódulo de Carvalho era um afamado cirurgião plástico que
enriquecera e envelhecera explorando a vaidade das grã-finas do café
society tornando-se um desses médicos que consideram o consultório
a coisa mais importante da Medicina.
Seu
consultório era no quarto andar e sua garçonnière no oitavo.
Sarita
estava no oitavo andar, justamente na garçonnière do Dr. Teódulo,
porque Sarita era amante dele e muito mais gente do que ela imaginava
— como é comum nesses casos — sabia disso. E Sarita estava
impaciente porque Téo não chegava.
Marcaram
às 2 hs e ficariam apenas uma hora, pois ele desceria às 3, como de
hábito, para a primeira consulta. Já eram 2 e 15 — confirmou ela
olhando o seu reloginho de platina e brilhantes — e nada dele
chegar.
Foi
ai que Sarita viu um carro se destacar no meio dos outros e parar bem
em frente ao prédio onde ela se encontrava. Era um modelo Fiat
especial de carroceria moderna, uma gracinha de carro — ela pensou,
porque além de entender de carros, Sarita era tarada por carros
esporte.
Súbito,
Sarita estranhou! Mas era ele, o Dr. Teódulo que descia do carro.
Retirou os óculos escuros para ver melhor e logo seus olhos se
fecharam contra a claridade, mas Sarita forçou a vista, seus olhos
foram se abrindo aos poucos para confirmar não somente a presença
de Téo junto ao carro como também a de Zizi, na direção. Sarita
ficou mais abismada ainda. Zizi — Zilda de Carvalho — era a
mulher dele e os dois se falavam e ela sorria. Téo estava na calçada
e dizia qualquer coisa à mulher.
Ela
respondeu, fez um aceno com a mão, o carro movimentou-se e vagou
outra vez pelo caudaloso rio que, logo adiante, pegaria seu último
afluente, vindo do Leme, e se espremeria dentro dos túneis, fiel ao
seu leito — coisa que Sarita jamais fora — para escoar-se como
sempre na Esplanada do Castelo.
O
Dr. Teódulo virou-se e entrou no prédio. Sarita virou-se e entrou
no quarto, colocando os óculos escuros sobre um móvel e olhando-se
no espelho, onde ajeitou a pintura com a ponta do dedo médio da mão
direita. Parou, olhou-se mais atentamente no espelho. Estava linda!
Sentou-se
na beira da cama, fuzilando de raiva, para esperar a chegada do
amante.
Barulho
de chaves na fechadura, a porta abriu-se e o eminente Dr. Teódulo de
Carvalho entrou esbaforido:
— Minha
querida, desculpe... eu tive um almoço…
—
Divertiu-se muito com ela?
— Ela
quem? — espantou-se ele, enquanto colocava o paletó no espaldar de
uma cadeira e começava a afrouxar o laço da gravata.
— Sua
mulher! Você pensa que eu não vi vocês dois chegando juntos lá
embaixo?
— Mas
Sarita, a Zizi ia ajudar na preparação do chá da ABBR hoje, rio
Copa...
— Ora,
Téo... Francamente, você me deixa plantada aqui horas e quando
chega vem todo sorridente com sua mulher. Às vezes eu penso que você
preferia trocar...
— Está
calor aqui — disse ele, já nu da cintura para cima.
Fechou
a guilhotina da janela onde estivera Sarita espiando, e ligou a
refrigeração.
— ...
talvez você preferisse ser casado comigo e ter a Zizi como amante.
Ele abraçou-a pela cintura e tentou desabotoar seu vestido por trás
do ousado decote das costas, enquanto falava carinhosamente:
—
Denguinho, deixa de coisa. Ela só me
trouxe aqui. Você sabe que meu carro está na oficina. Ela me trouxe
no dela.
Sarita
esquivou-se, quando ele falou no carro dela. — Carro novo, não é?
— É . . . realmente o carro... Mas Sarita não o deixou terminar:
— E
você tinha me prometido um carro, não tinha? Deu pra mim? Não, deu
pra ela.
—Mas
foi ela que comprou!
— E
foi você que pagou — arrematou ela, em cima do argumento dele.
Téo
estava sentado na beira da cama, tirando os sapatos. Como todo
grã-fino que se preza, cuidava-se. Seu corpo era queimado de sol,
ele fazia massagem regularmente, tomava sauna. Nos seus quarenta e
poucos anos, era um homem enxuto. Estava decidido a não brigar:
— Você
está com ciúmes dela ou do carro — levantou-se e abraçou-a outra
vez. Segurou-lhe. o queixo e virou-lhe o rosto em direção a seu
olhar:
— Hem?
— Dos
dois — respondeu Sarita, mais calma. — Dela não precisa ter
ciúmes, Denguinho. Ela é que devia ter ciúmes de você...
Sarita
envolveu o pescoço dele num abraço: — Mas ela ganhou um carro,
né? — sua voz agora era infantil.
Téo
puxou-a para junto da cama, onde sentou-se com ela no colo:
—
Denguinho, aquele carro custa muito caro.
Não é pelo dinheiro, você sabe. Mas eu não poderia dar um carro
daqueles para você. Como é que você explicaria a Eduardo?
Enquanto
os dois se beijavam longamente, expliquemos que Eduardo era o marido
de Sarita, também grã-fino, também frequentador das mesmas rodas
que Téo frequentava, mas que não era tão rico como Téo. Apenas um
dos muitos frequentadores dessas rodas, vivendo de comissões, hoje
ganhando muito dinheiro aqui para poder cobrir as dívidas ali, num
trapézio constante para aguentar um padrão de vida que não era o
seu.
O
médico conseguira afinal desprender o vestido da amante e ela saltou
de dentro dele só de calcinhas e sutiã, levantando-se do colo de
Téo para entrar no banheiro anexo ao quarto. De lã falava para ele
escutar:
— E
se eu arrumasse um jeito para tapear o Edu, você me daria um carro
igual ao da Zizi?
Téo
levantara-se, colocara o vestido dela esticado sobre um móvel e
tirara as calças, ficando apenas com a sunga de nylon. Respondeu
evasivamente:
— Mas
meu bem, aquele carro não é de série. Deve ser o único existente
no Brasil.
— É
o que você pensa. — Sarita apareceu na porta do banheiro, enrolada
numa toalha estampada. — Eu sei quem tem um igualzinho.
— Quem?
— O
Cid.
— Que
Cid? — intrigou-se Téo, mas puxando-a para a cama, enquanto ela
explicava quem era Cid. Um playboy de São Paulo que agora estava
morando no Rio, aquele que no aniversário da Betty tomara o maior
pifa e caíra na piscina com smoking e tudo.
— Você
se lembra? — e Sarita levantou o busto, fincou o cotovelo na cama e
ficou semi-recostada, olhando para Téo. Ele fingia estar mais
interessado nela do que no tal de Cid. Puxou-a outra vez para junto
de si e beijou-a na boca. Terminado o beijo, Sarita voltou à carga:
— A
irmã do Cid é minha amiga. Também está morando no Rio, casou-se
com um engenheiro da SURSAN. Ela foi tomar um chá comigo noutro dia.
Disse que a família do Cid está muito preocupada com ele. O pai
está querendo cortar a mesada, porque ele é um gastador. Ele é
noivo cm São Paulo e vai casar breve. Deve estar precisando de
dinheiro, não acha?
—
Hum-hum — gemeu Téo.
—
Então! É capaz de vender o carro. Aí
você compra pra mim e eu dou um jeito de dobrar o Edu, tá?
— Tá.
E
Téo desenrolou a toalha que envolvia Sarita, abraçou-a e — nessa
tarde — não se falou mais nisso. Nem era assunto para ser debatido
enquanto eles faziam o que fizeram.
Com
franqueza, nenhum assunto cabe, em tais momentos.
Sérgio
Porto, in As cariocas
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