sábado, 28 de novembro de 2015

A grã-fina de Copacabana

Sarita olhava distraída o trânsito colorido que descia pela Avenida N. S. de Copacabana. Aquele rio de carros que corria em direção ao centro da cidade e ali engrossava depois de receber todos os seus afluentes os carros que vinham do Leblon, via Posto 6, os que vinham de Ipanema, via Lagoa, os que vinham do Bairro Peixoto e das muitas ruas transversais.
Acendeu um cigarro já impaciente e continuou na janela. Estava no oitavo andar de um edifício do Lido, onde o eminente Dr. Teódulo de Carvalho tinha o seu consultório e sua clínica; uma clínica muito bem montada para padronizar os narizes de moças ricas que tinham em seus respectivos apêndices nasais o centro de seus complexos, ou para esticar as pelancas de velhotas ociosas para as quais a velhice era um fantasma constante, muito mais constante durante o dia, quando suas rugas eram mais evidentes, do que durante a noite, quando costumam ser mais constantes os fantasmas de um modo geral. Em suma: o Dr. Teódulo de Carvalho era um afamado cirurgião plástico que enriquecera e envelhecera explorando a vaidade das grã-finas do café society tornando-se um desses médicos que consideram o consultório a coisa mais importante da Medicina.
Seu consultório era no quarto andar e sua garçonnière no oitavo.
Sarita estava no oitavo andar, justamente na garçonnière do Dr. Teódulo, porque Sarita era amante dele e muito mais gente do que ela imaginava — como é comum nesses casos — sabia disso. E Sarita estava impaciente porque Téo não chegava.
Marcaram às 2 hs e ficariam apenas uma hora, pois ele desceria às 3, como de hábito, para a primeira consulta. Já eram 2 e 15 — confirmou ela olhando o seu reloginho de platina e brilhantes — e nada dele chegar.
Foi ai que Sarita viu um carro se destacar no meio dos outros e parar bem em frente ao prédio onde ela se encontrava. Era um modelo Fiat especial de carroceria moderna, uma gracinha de carro — ela pensou, porque além de entender de carros, Sarita era tarada por carros esporte.
Súbito, Sarita estranhou! Mas era ele, o Dr. Teódulo que descia do carro. Retirou os óculos escuros para ver melhor e logo seus olhos se fecharam contra a claridade, mas Sarita forçou a vista, seus olhos foram se abrindo aos poucos para confirmar não somente a presença de Téo junto ao carro como também a de Zizi, na direção. Sarita ficou mais abismada ainda. Zizi — Zilda de Carvalho — era a mulher dele e os dois se falavam e ela sorria. Téo estava na calçada e dizia qualquer coisa à mulher.
Ela respondeu, fez um aceno com a mão, o carro movimentou-se e vagou outra vez pelo caudaloso rio que, logo adiante, pegaria seu último afluente, vindo do Leme, e se espremeria dentro dos túneis, fiel ao seu leito — coisa que Sarita jamais fora — para escoar-se como sempre na Esplanada do Castelo.
O Dr. Teódulo virou-se e entrou no prédio. Sarita virou-se e entrou no quarto, colocando os óculos escuros sobre um móvel e olhando-se no espelho, onde ajeitou a pintura com a ponta do dedo médio da mão direita. Parou, olhou-se mais atentamente no espelho. Estava linda!
Sentou-se na beira da cama, fuzilando de raiva, para esperar a chegada do amante.
Barulho de chaves na fechadura, a porta abriu-se e o eminente Dr. Teódulo de Carvalho entrou esbaforido:
Minha querida, desculpe... eu tive um almoço…
Divertiu-se muito com ela?
Ela quem? — espantou-se ele, enquanto colocava o paletó no espaldar de uma cadeira e começava a afrouxar o laço da gravata.
Sua mulher! Você pensa que eu não vi vocês dois chegando juntos lá embaixo?
Mas Sarita, a Zizi ia ajudar na preparação do chá da ABBR hoje, rio Copa...
Ora, Téo... Francamente, você me deixa plantada aqui horas e quando chega vem todo sorridente com sua mulher. Às vezes eu penso que você preferia trocar...
Está calor aqui — disse ele, já nu da cintura para cima.
Fechou a guilhotina da janela onde estivera Sarita espiando, e ligou a refrigeração.
... talvez você preferisse ser casado comigo e ter a Zizi como amante. Ele abraçou-a pela cintura e tentou desabotoar seu vestido por trás do ousado decote das costas, enquanto falava carinhosamente:
Denguinho, deixa de coisa. Ela só me trouxe aqui. Você sabe que meu carro está na oficina. Ela me trouxe no dela.
Sarita esquivou-se, quando ele falou no carro dela. — Carro novo, não é? — É . . . realmente o carro... Mas Sarita não o deixou terminar:
E você tinha me prometido um carro, não tinha? Deu pra mim? Não, deu pra ela.
Mas foi ela que comprou!
E foi você que pagou — arrematou ela, em cima do argumento dele.
Téo estava sentado na beira da cama, tirando os sapatos. Como todo grã-fino que se preza, cuidava-se. Seu corpo era queimado de sol, ele fazia massagem regularmente, tomava sauna. Nos seus quarenta e poucos anos, era um homem enxuto. Estava decidido a não brigar:
Você está com ciúmes dela ou do carro — levantou-se e abraçou-a outra vez. Segurou-lhe. o queixo e virou-lhe o rosto em direção a seu olhar:
Hem?
Dos dois — respondeu Sarita, mais calma. — Dela não precisa ter ciúmes, Denguinho. Ela é que devia ter ciúmes de você...
Sarita envolveu o pescoço dele num abraço: — Mas ela ganhou um carro, né? — sua voz agora era infantil.
Téo puxou-a para junto da cama, onde sentou-se com ela no colo:
Denguinho, aquele carro custa muito caro. Não é pelo dinheiro, você sabe. Mas eu não poderia dar um carro daqueles para você. Como é que você explicaria a Eduardo?
Enquanto os dois se beijavam longamente, expliquemos que Eduardo era o marido de Sarita, também grã-fino, também frequentador das mesmas rodas que Téo frequentava, mas que não era tão rico como Téo. Apenas um dos muitos frequentadores dessas rodas, vivendo de comissões, hoje ganhando muito dinheiro aqui para poder cobrir as dívidas ali, num trapézio constante para aguentar um padrão de vida que não era o seu.
O médico conseguira afinal desprender o vestido da amante e ela saltou de dentro dele só de calcinhas e sutiã, levantando-se do colo de Téo para entrar no banheiro anexo ao quarto. De lã falava para ele escutar:
E se eu arrumasse um jeito para tapear o Edu, você me daria um carro igual ao da Zizi?
Téo levantara-se, colocara o vestido dela esticado sobre um móvel e tirara as calças, ficando apenas com a sunga de nylon. Respondeu evasivamente:
Mas meu bem, aquele carro não é de série. Deve ser o único existente no Brasil.
É o que você pensa. — Sarita apareceu na porta do banheiro, enrolada numa toalha estampada. — Eu sei quem tem um igualzinho.
Quem?
O Cid.
Que Cid? — intrigou-se Téo, mas puxando-a para a cama, enquanto ela explicava quem era Cid. Um playboy de São Paulo que agora estava morando no Rio, aquele que no aniversário da Betty tomara o maior pifa e caíra na piscina com smoking e tudo.
Você se lembra? — e Sarita levantou o busto, fincou o cotovelo na cama e ficou semi-recostada, olhando para Téo. Ele fingia estar mais interessado nela do que no tal de Cid. Puxou-a outra vez para junto de si e beijou-a na boca. Terminado o beijo, Sarita voltou à carga:
A irmã do Cid é minha amiga. Também está morando no Rio, casou-se com um engenheiro da SURSAN. Ela foi tomar um chá comigo noutro dia. Disse que a família do Cid está muito preocupada com ele. O pai está querendo cortar a mesada, porque ele é um gastador. Ele é noivo cm São Paulo e vai casar breve. Deve estar precisando de dinheiro, não acha?
Hum-hum — gemeu Téo.
Então! É capaz de vender o carro. Aí você compra pra mim e eu dou um jeito de dobrar o Edu, tá?
Tá.
E Téo desenrolou a toalha que envolvia Sarita, abraçou-a e — nessa tarde — não se falou mais nisso. Nem era assunto para ser debatido enquanto eles faziam o que fizeram.
Com franqueza, nenhum assunto cabe, em tais momentos.
Sérgio Porto, in As cariocas

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