Feliz
assim por teres tudo o que sou?
Feliz
por perderes tudo o que sei?
Só
não te dou o que não serei.
Não,
a minha morte, não ta dou.
Pedro
Tamen
1.
Não basta morrer para conhecer o sorriso de Deus — mesmo que, como
foi o meu caso, se tenha vivido abismada nele uma vida inteira.
Quando o pior acontecia, aquele sorriso descia às minhas trevas com
um soluço de baloiço, um gingar de gonzos arrancado às cordas da
infância. Eu sentava-me nele e subia, balouçando, até à luz. O
pior aconteceu-me cedo, tive sorte. Deus procura primeiro os que
sofrem antes do conhecimento específico da dor, talvez porque os
outros sabem demasiado para poderem ser salvos.
Tu
dizias que era ao contrário: que Deus nasce da ignorância própria
dos sofrimentos prematuros. Mas tu, meu aluno dileto, cedo te
deixaste povoar pelo excesso do saber. Deus não sabia nada do
Universo quando o criou. Imagino que se sentiria só. Imagino que num
momento impreciso essa solidão se terá tornado maior do que Ele
próprio, estourando numa gigantesca flor de luz. E imagino-O,
depois, tentando dar um sentido particular a cada uma das pétalas
dessa luz dispersa. Agora que saí do corpo que fui — para me
tornar pólen, poeira nos teus olhos, pura imaginação de mim —
imagino-o melhor ainda, ébrio de luz, lúcido, encandeado por um
Lúcifer oculto e criador incrustado no seu próprio ser, em estado
de paixão com a história desencadeada pela sua omnipotente solidão.
E balouço no Seu sorriso outra vez, a vez definitiva porque o meu
corpo está lá embaixo, num caixão, contemplado e lembrado e
chorado pela última vez.
Não
me levantarei da cama amanhã depois de Lhe pedir em surdina que dê
um impulso maior ao balouço, que o empurre com força até que os
pés me voem para fora do calor aterrado dos lençóis. Ninguém mais
vai estar à minha espera, não terei de me disfarçar de desculpas,
não voltarei a iludir ou desiludir ninguém. Não voltarei a morrer
no corpo do único homem que me abriu no corpo a passagem secreta
para a morte. Não voltarei à desilusão do renascimento. Sobretudo
não voltarei a desiludir-te a ti, o descrente que me ensinou a crer
melhor, o meu pequeno e velho Deus de algibeira, o meu amigo.
Despojada
de corpo é-me mais fácil transformar-me no próprio balouço, na
luz dançante de que ele é feito. Num murmúrio de vento peço-Lhe
que não me empurre tão depressa para esse lugar iluminado que é a
Sua Carne, peço-Lhe que me deixe matar saudades desse mundo que
deixei tão de repente. Matar saudades de ti. Ou matar-te, como fazem
as crianças, para recomeçar uma outra história, no balouço
quotidiano do teu sorriso.
Inês
Pedrosa, in Fazes-me falta
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