quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Governados pelos mortos

(“ fala com um descamponês ”) 
 
Estamos aqui sentados debaixo da árvore sagrada da sua família. Pode-me dizer qual o nome dessa árvore?”
Porquê?
Porque gosto de conhecer os nomes das árvores.
O senhor devia saber era o nome que a árvore lhe dá a si. — Depois de tanta guerra: como vos sobreviveu a esperança?”
Mastigámo-la. Foi da fome. Veja os pássaros: foram comidos pela paisagem.
E o que aconteceu com as casas?”
As casas foram fumadas pela terra. Falta de tabaco, falta de suruma. Agora só me entristonho de lembrança prematura. A memória do cajueiro me faz crescer cheiros nos olhos.
Como interpreta tanta sofrência?”
Maldição. Muita e muito má maldição. Faltava só a cobra ser canhota.
E porquê?”
Não aceitamos a mandança dos mortos. Mas são eles que nos governam.
E eles se zangaram?”
Os mortos perderam acesso a Deus. Porque eles mesmos se tornaram deuses. E têm medo de admitir isso. Querem voltar a ser vivos. Só para poderem pedir a alguém.
E estes campos, tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?”
Foram. Nós só ficámos com o descampado.
E agora?”
Agora somos descamponeses.
E bichos, ainda há aqui bichos?”
Agora, aqui só há inorganismos. Só mais lá, no mato, é que ainda abundam. — Nós ainda ontem vimos flamingos...
Esses se inflamam no crepúsculo: são os inflamingos.
E outras aves da região. Pode falar delas?”
Antes de haver deserto, a avestruz pousava em árvore, voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Agora, há nomes que eu acho que estão desencostados...
Por exemplo?”
Caso do beija-flor. É um nome que deveria ser consertado. A flor é que levaria o título de beija-pássaros.
Mas outros animais não há?”
A bichagem vai acabando. O mabeco, dito o cão-selvagem, vai sofrendo as humanas selvajarias. Antes de acabar a lição, ele já terá aprendido a não existir.
Parece desiludido com os homens.
O vaticínio da toupeira é que tem razão: um dia, os restantes bichos lhe farão companhia em suas subterraneidades. Eu acredito é na sabedoria do que não existe. Afinal, nem tudo que luz é besouro. É o caso do pirilampo. Pirilampo morre? Ou funde? Suas réstias mortais aumentam o escuro.
Tanta certeza na bicharada...
Você não olhou bem esse mundo de cá. Já viu pássaro canhoto? Camaleão vesgo? Papagaio gago?
Acredita em ensinamento de bichos?”
Todo o caranguejo é um engenheiro de buracos. Ele sabe tudo de nada. Há outros, demais. O mais idoso é o escaravelhinho. Mas, de todos, quem anda sempre de janela é o cágado.
Você não sofre de um certo isolamento?”
Sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam de bicho— do-mato. Em vez de me diminuir eu me incho com tal distinção. Como antedisse: a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa.
Mas a sua mulher não lhe faz companhia?”
Ela é minha patrã. De vez em quando a gente dedilha uma conversa. É uma acompanhia, faz conta uma estação das chuvas. Mas a tradição nos manda: com mulher a gente não pode intimizar. Caso senão acabamos enfeitiçados.
Uma última mensagem.
Não sei. Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato. Mais feliz é ainda o sapato que trabalha deitado na terra. Tão rasteiro que nem dá conta quando morre.
Mia Couto, in Contos do nascer da Terra

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