O maior mistério de todos para quem nos estudar de longe será o ódio. Nossa reputação de povo amável talvez sobreviva até 2050. Então, como explicar o ódio destes dia?
Coitado de quem, no futuro, tentar entender o que se passava no Brasil, hoje. A perspectiva histórica não ajudará, só complicará mais. Havia uma presidente — Vilma, Dilma, qualquer coisa assim — eleita e reeleita democraticamente por um partido de esquerda, mas criticada pelo seu próprio partido por adotar, no seu segundo mandato, uma política econômica neoliberal, que deveria agradar à oposição neoliberal, que, no entanto, tentava derrubar a presidente — em parte pela sua política econômica!
Os
historiadores do futuro serão justificados se desconfiarem de uma
conspiração por trás da contradição. Vilma ou Dilma teria optado
por uma política econômica contrária a todos os seus princípios
para que provocasse uma revolta popular e levasse a uma ditadura de
esquerda, liderada pelo seu mentor político, um tal de Gugu, Lulu,
Lula, por aí.
Como
já saberá todo mundo no ano de 2050, políticas econômicas
neoliberais só aumentam a desigualdade e levam ao desastre. Vilma ou
Dilma teria encarregado seu ministro da Fazenda Joaquim (ou Manoel)
Levis de causar um levante social o mais rápido possível, para
apressar o desastre. Fariam parte da conspiração duas grandes
personalidades nacionais, Eduardo Fuinha e Renan Baleeiro, ou coisas
parecidas, com irretocáveis credenciais de esquerda, que teriam
voluntariamente se sacrificado, tornando-se antipáticos e
reacionários para criar na população um sentimento de nojo da
política e dos políticos e também contribuir para a revolta.
Outra
personalidade que disfarçaria sua candura e simpatia para revoltar a
população seria o ministro do Supremo Gilmar Mentes.
Uma
particularidade do Brasil que certamente intrigará os historiadores
futuros será a aparente existência no país — inédita em todo o
mundo — de dois sistemas de pesos e medidas. O cidadão poderia
escolher um sistema como se escolhe uma água mineral, com gás ou
sem gás. No caso, pesos e medidas que valiam para todo mundo, até o
PSDB, ou pesos e medidas que só valiam para o PT.
Outra
dificuldade para brasilianistas que virão será como diferenciar os
escândalos de corrupção, que eram tantos. Por que haveria
escândalos que davam manchetes e escândalos que só saíam nas
páginas internas dos jornais, quando saíam? Escândalos que
acabavam em cadeia ou escândalos que acabavam na gaveta de um
procurador camarada?
Mas
o maior mistério de todos para quem nos estudar de longe será o
ódio. Nossa reputação de povo amável talvez sobreviva até 2050.
Então, como explicar o ódio destes dias?
Luís
Fernando Veríssimo,
in O Globo (20/09/2015)
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