quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Solidão

(Antes de adormecer)
Parece tão horrível ser solteiro, envelhecer lutando por manter a dignidade enquanto se pede um convite sempre que se deseja passar o serão em companhia, tendo de levar a refeição para casa, incapaz de esperar alguém com um sentimento de lassidão e de calma confiança, apenas capaz de, com dificuldade e vexame, dar um presente a alguém, tendo de dizer boa noite à porta de casa, nunca podendo subir as escadas a correr ao lado da mulher, não tendo outra consolação quando estiver doente que a vista da janela, se se puder sentar na cama, tendo somente portas ao lado que dão para salas de estar de outras pessoas, sentindo-se afastado da própria família, com quem só pelo casamento se pode manter laços de intimidade, primeiro pelo casamento dos pais, depois, passado o efeito deste casamento, pelo próprio, tendo de admirar os filhos dos outros e não lhe sendo sequer permitido continuar a dizer: Eu não tenho nenhum, nunca se sentindo envelhecer uma vez que não há gente da família a crescer à volta, formando-se na aparência e no comportamento segundo os modelos de uma ou duas pessoas solteiras que conheceu na juventude. Tudo isto é verdade, mas é fácil cometer o erro de desdobrar de tal maneira os sofrimentos futuros à nossa frente que os nossos olhos têm de passar por eles e nunca mais voltar, quando, na realidade, tanto hoje como amanhã, a pessoa permanece com um corpo verdadeiro e uma cabeça verdadeira, e uma testa verdadeira, para bater com a mão.”
Franz Kafka, in Diário (14/11/1911)

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