terça-feira, 18 de agosto de 2015

Alfabetização


Graciliano relata em Infância – obra autobiográfica – suas primeiras experiências de alfabetização, aterrorizantes, aliás, tendo o pai como primeiro professor:

Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre. Cedo revelou impaciência e assustou-me. Atirava rápido meia dúzia de letras, ia jogar solo. À tarde pegava um côvado, levava-me para a sala de visitas — e a lição era tempestuosa. Se não visse o côvado, eu ainda poderia dizer qualquer coisa. Vendo-o, calava-me. Um pedaço de madeira, negro, pesado, da largura de quatro dedos.
[...]
Enfim consegui familiarizar-me com as letras quase todas. Aí me exibiram outras vinte e cinco, diferentes das primeiras e com os mesmos nomes delas. Atordoamento, preguiça, desespero, vontade de acabar-me. Veio terceiro alfabeto, veio quarto, e a confusão se estabeleceu, um horror de quiproquós. Quatro sinais com uma só denominação. Se me habituassem às maiúsculas, deixando as minúsculas para mais tarde, talvez não me embrutecesse. Jogaram-me simultaneamente maldades grandes e pequenas, impressas e manuscritas. Um inferno. Resignei-me – e venci as malvadas. Duas, porém, se defenderam: as miseráveis dentais que ainda hoje me causam dissabores quando escrevo.
Sozinho não me embaraçava, mas na presença de meu pai emudecia. Ele endureceu algumas semanas, antes de concluir que não valia a pena tentar esclarecer-me. Uma vez por dia o grito severo me chamava à lição. Levantava-me, com um baque por dentro, dirigia-me à sala, gelado. E emburrava: a língua fugia dos dentes, engrolava ruídos confusos.”
Graciliano Ramos, in Infância

Nenhum comentário:

Postar um comentário