Cresci;
e nisso é que a família não interveio; cresci naturalmente, como
crescem as magnólias e os gatos. Talvez os gatos são menos
matreiros, e, com certeza, as magnólias são menos inquietas do que
eu era na minha infância. Um poeta dizia que o menino é pai do
homem. Se isto é verdade, vejamos alguns lineamentos do menino.
Desde
os cinco anos merecera eu a alcunha de "menino diabo"; e
verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu
tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um
dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do
doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da
travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o
doce "por pirraça"; e eu tinha apenas seis anos.
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias;
punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de
freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o,
dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes
gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um —
"ai, nhonhô!" — ao que eu retorquia: — "Cala a
boca, besta!" — Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos
de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar
beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste
jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram
também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me
em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de
gente, fazia
o
por simples formalidade: em particular dava-me beijos.
Não
se conclua daqui que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar
a cabeça dos outros nem a esconder-lhes os chapéus; mas opiniático,
egoísta e algo contemptor dos homens, isso fui; se não passei o
tempo a esconder-lhes os chapéus, alguma vez lhes puxei pelo rabicho
das cabeleiras.
Outrossim,
afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a
atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la,
não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e
lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns
preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações,
me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito,
que a faz viver, para se tomar uma vã fórmula. De manhã, antes do
mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse,
assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a
noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço,
dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! brejeiro! ah!
brejeiro!
Sim,
meu pai adorava-me. Minha mãe era uma senhora fraca, de pouco
cérebro e muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa, —
caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada; temente às
trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Da
colaboração dessas duas criaturas nasceu a minha educação, que,
se tinha alguma coisa boa, era no geral viciosa, incompleta, e, em
partes, negativa. Meu tio cônego fazia às vezes alguns reparos ao
irmão; dizia-lhe que ele me dava mais liberdade do que ensino e mais
afeição do que emenda; mas meu pai respondia que aplicava na minha
educação um sistema inteiramente superior ao sistema usado; e por
este modo, sem confundir o irmão, iludia-se a si próprio.
De
envolta com a transmissão e a educação, houve ainda o exemplo
estranho, o meio doméstico. Vimos os pais; vejamos os tios. Um
deles, o João, era um homem de língua solta, vida galante, conversa
picaresca. Desde os onze anos entrou a admitir-me às anedotas reais
ou não, eivadas todas de obscenidade ou imundície. Não me
respeitava a adolescência, como não respeitava a batina do irmão;
com a diferença que este fugia logo que ele enveredava por assunto
escabroso. Eu não; deixava-me estar, sem entender nada, a princípio,
depois entendendo e enfim achando-lhe graça. No fim de certo tempo,
quem o procurava era eu; e ele gostava muito de mim, dava-me doces,
levava-me a passeio. Em casa, quando lá ia passar alguns dias, não
poucas vezes me aconteceu achá-lo, no fundo da chácara, no
lavadouro, a palestrar com as escravas que batiam roupa; aí é que
era um desfiar de anedotas, de ditos, de perguntas, e um estalar de
risadas, que ninguém podia ouvir, porque o lavadouro ficava muito
longe de casa. As pretas, com uma tanga no ventre, a arregaçar-lhes
um palmo dos vestidos, umas dentro do tanque, outras fora, inclinadas
sobre as peças de roupa, a batê-las, a ensaboá-las, a torcê-las,
iam ouvindo e redargüindo às pilhérias do tio João, e a
comentá-las de quando em quando com esta palavra:
— Cruz,
diabo!... Este sinhô João é o diabo!
Bem
diferente era o tio cônego. Esse tinha muita austeridade e pureza;
tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas
compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte
substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as
preeminências, as sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da
sacristia que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que
uma infração dos mandamentos. Agora, a tantos anos de distância,
não estou certo se ele poderia atinar facilmente com um trecho de
Tertuliano, ou expor, sem titubear, a história do símbolo de
Nicéia; mas ninguém, nas festas cantadas, sabia melhor o número e
caso das cortesias que se deviam ao oficiante. Cônego foi a única
ambição de sua vida; e dizia de coração que era a maior dignidade
a que podia aspirar. Piedoso, severo nos costumes, minucioso na
observância das regras, frouxo, acanhado, subalterno, possuía
algumas virtudes, em que era exemplar, mas carecia absolutamente da
força de as incutir, de as impor aos outros.
Não
digo nada de minha tia materna, Dona Emerenciana, e aliás era a
pessoa que mais autoridade tinha sobre mim; essa diferençava-se
grandemente dos outros; mas viveu pouco tempo em nossa companhia, uns
dois anos. Outros parentes e alguns íntimos não merecem a pena de
ser citados; não tivemos uma vida comum, mas intermitente, com
grandes claros de separação. O que importa é a expressão geral do
meio doméstico, e essa aí fica indicada, — vulgaridade de
caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão
da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse
estrume é que nasceu esta flor.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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