sexta-feira, 12 de junho de 2015

Satanificação

A Ira, a Soberba, a Inveja, a Luxúria, a Avareza, a Gula e, finalmente, a Preguiça, o sonolento Demônio do Meio-Dia – esses os sete pecados capitais que já podem ser identificados na satanificação, isso de acordo com local e hora. Os diabinhos da Ira estão no trânsito, olhos injetados de fumaça e ódio, a boca espumejando no ranger de dentes e freios: seis horas da tarde, Hora da Ave-Maria, lembra? Tinha um quadro que em várias salas de visita da minha infância: no doce colorido do crepúsculo, um grupo de camponeses bem vestidos e rosados, as mulheres de longos aventais e toucas, os homens de sapatões rudes mas sólidos, as mãos limpas, os olhos baixos no fervor da prece por entre os montes de feno dourado, Ave-Maria – acho que esse era o nome do quadro. Lembro que tinha um bebezinho louro no cesto ou berço de madeira, queria eu ser aquele bebezinho, pensei na tarde em que vi um tipo descer do carro (ao lado do meu) e verde e aumentando em cólera apontar o revólver para um velho que teria propositadamente amassado o seu pára-lama. Hora de vítimas de desastres e da fuzilaria, as armas esperando no porta-luvas, que luvas? Hora de vítimas dos assaltos, quando o carro para no sinal vermelho e um outro vermelho se acende no peito. Na nuca. Tinha um antigo programa no rádio nessas hora crepuscular, as músicas tão espirituais, minha mãe chamava a gente para rezar junto, só pensamentos elevados enquanto o chefe de família – mas que família? Que chefe?
Os possessos da Soberba evitam as aglomerações, as misturas. Portas fechadas, o horror da invasão. Gostam de reuniões sociais seletas mas espaçosas, onde os peitos estufados, cobertos de medalhas, iniciam a lenta dança dos pavões – poder político, poder econômico e outros poderes, varetas dos leques que se cruzam mas não se olham, o que digo? se olham para admirar a própria imagem refletida no olho do outro. Já os possessos da Inveja têm especial predileção pelos palácios burocráticos e centros de artistas do baile das quatro artes, ô Deus! como sofrem os invejosos na luta competitiva à qual são condenados, os olhos cozidos como os olhos da lagosta em água fervente, sou Caim matando meu irmão? Sou Judas traindo o meu Mestre? O invejoso só tem trégua com a infelicidade do próximo mas por que no lugar desse próximo aniquilado nascem dez, vinte vencedores?! Um sofrimento. De todos os pecadores, talvez o invejoso seja o que mais sofre embora os possessos da Luxúria também rodopiem sem descanso, as injúrias (era assim que minha pajem chamava às partes baixas) açuladas e trespassadas pelos garfos dos diabinhos luxuriosos, a voz pesada, o olhar pesado – tantas ruas do prazer e do desprazer da insatisfação. Os estímulos da indústria do sexo no auge do aperfeiçoamento para o desempenho à altura e ainda a ansiedade, o desassosego na busca que é só obsessão, sou caçador? Ou caça? Mas essa gente não pensa noutra coisa? – perguntaria tia Pombinha diante de uma banca de revistas e jornais. Pensa, sim. Pensa muito em guardar e agora as caras e casas tomam um ar respeitável, estamos entrando na rua dos bancos e dos negócios: eis a Avareza com seus demoninhos de olho vivo, umedecendo a ponta do dedo entortado de tanto contar dinheiro, medo de dar, medo de dividir. O medo dos medos: medo de perder, ih! como acumular tudo numa vida assim provisória? “Mas por que o desperdício dessa vela acesa?” – reclamou o avarento que preferiu morrer no escuro. Quanto aos possessos da Gula e da Preguiça, esses se espalharam tão intensamente: os da Gula nos bairros ricos de preferência, não por virtude dos pobres mas por simples insuficiência econômica. Se a beleza (que os luxuriosos amam) virou artigo de luxo, a comida só pode ser um belo vício nos bairros de classe A. É por acaso que falo nos dois pecados assim juntos porque o preguiçoso nunca é um guloso. A gula exige empenho, imaginação do apetite. Mastigar cansa e esse dispêncio de energia o preguiçoso evita, prefere papinhas, líquidos. Quando o guloso chega à saciedade e não está saciado (nunca está) mete o dedo na garganta, quer recomeçar tudo. Mas eis uma violência que o preguiçoso detesta: o ato de vomitar. Ou antes, que não aprecia porque ele não odeia nem ama, a paixão é laboriosa, exige fervor e o preguiçoso nunca esquenta. Não se define nem define: contorna. Na imobilidade se defende dos prazeres da cama e da mesa. No alheamento que chama de privacidade, se guarda. Música suave, que não seja solicitante. Pessoas que não façam perguntas, ele nem sequer termina as frases, os gestos. A graça das coisas incompletas no ar… Vem a mosca obumbrada, pousa na sua face e ele afasta a mosca com um movimento brando mas quando ela volta uma segunda vez ele deixa ficar deixa ficar deixa ficar.”
Lygia Fagundes Telles, in A disciplina do amor

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