sábado, 6 de junho de 2015

Apreensão ao começar um romance


Nunca senti maior apreensão ao começar um romance. E se digo romance é por não saber de que outra maneira chamá-lo. Não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento. A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bem”. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura. Mas estou deixando o meu leitor no escuro. Este livro consiste das recordações que tenho de um homem com quem, em épocas muito espaçadas, tive íntimo contato; mas pouco sei do que lhe aconteceu nos intervalos. Creio que, recorrendo à imaginação, eu poderia preencher plausivelmente as lacunas e tornar mais coerente a minha narrativa; mas a tal não me sinto atraído. Quero unicamente relatar fatos de que tenho conhecimento.
Há anos escrevi um romance intitulado Um gosto e seis vinténs. Nele destaquei um famoso pintor, Paul Gauguin, e, valendo-me do privilégio do romancista, imaginei vários incidentes, no intuito de ilustrar o tipo que eu criara inspirado nos escassos fatos que conhecia da vida do artista francês. Na obra atual nada tentei de semelhante. Não inventei coisa alguma. Para poupar constrangimento a pessoas que ainda vivem, dei aos personagens desta história nomes fictícios e procurei, por outros meios, evitar que sejam reconhecidos. O homem sobre quem escrevo não é célebre; talvez nunca chegue a sê-lo. É possível que, ao atingir o fim da vida, não deixe, de sua passagem pela terra, vestígio maior que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. Neste caso, se o meu livro for lido, sê-lo-á exclusivamente pelo interesse intrínseco que possa ter. Mas é possível que o gênero de vida que esse homem escolheu para si próprio e a singular força e doçura do seu caráter tenham uma influência sempre crescente sobre seus semelhantes, de modo que, mesmo muito tempo depois de sua morte, talvez se compreenda que nesta época viveu uma criatura extraordinária. Ficará, então, claro sobre quem escrevi neste livro, e aqueles que desejarem conhecer alguma coisa dos primeiros anos da existência desse homem talvez aqui encontrem algo que lhes satisfaça. Creio que o meu livro, dentro de suas possibilidades, que reconheço limitadas, será uma útil fonte de informações para os biógrafos do meu amigo.
Não é minha intenção fazer crer que as conversas foram registradas literalmente. Não tomei nota sobre o que foi dito nesta ou naquela ocasião, mas tenho boa memória quanto ao que me diz respeito e creio que, embora expressas em minhas próprias palavras, essas conversas representam fielmente o que foi dito. Há pouco declarei nada ter inventado; quero agora modificar essa asserção. Tomei a liberdade, que desde o tempo de Heródoto os historiadores têm tomado, de pôr nos lábios dos meus personagens palavras que eu, pessoalmente, não poderia ter ouvido. Agi pela mesma razão que os fez agir; para dar vida e verossimilhança a cenas que teriam sido incolores se apenas relatadas. Quero ser lido, e creio estar no meu direito quando faço o possível para tornar agradável a leitura do meu livro. O leitor inteligente facilmente perceberá em que ocasiões me vali deste artifício e tem toda a liberdade de rejeitá-lo.
William Somerset Maugham, in O fio da navalha

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