sábado, 2 de maio de 2015

Viver é tão bom!

Por que a morte me estarrece assim, como se fosse a primeira vez, como se nunca antes? A rara morte, três ou quatro. Com as outras, tudo normal ou quase: o choque. A introspecção com uma consolação filosofante. O apego maior a Deus. A cristalização da dor, pequenas pedras que vou guardando na minha mesa, de vez em quando tomo uma, sinto-lhe a forma, o calor, aperto-a com força na gruta da mão. Devolvo-a a seu lugar. Mas essas três ou quatro mortes que me arremeteram à infância, a certas noites de tamanha fragilidade. Tamanho medo, como se não fosse amanhecer mais.
A memória se abre na mesa, baralho de cartas marcadas, escolho uma assim ao acaso. Este é um jantar na casa dos B.M., foi em 43? Ou em 44? Não importa. E.V. chega com uma capa de chuva, cachecol azul-marinho e chapéu desabado, faz frio. Chegam alguns colegas da faculdade, alguém me entrega um violão, toco mal, mas o que é bem ou mal nessa idade? O calor do vinho, o calor da glória que vinha dele, tudo era importante, ah! Que emoção quando cantamos a cantiga da Academia, os versos se referiam à guerra: Quando se sente bater/No peito heroica pancada/Deixa-se a folha dobrada/Enquanto se vai morrer.
E.V. faz perguntas sobre a participação dos estudantes na Força Expedicionária: sim, vários dos nossos já tinham partido, estavam lutando na Itália. Um poeta se levanta e a voz embargada fala do amor e da morte enquanto, emocionadíssima, eu faço no violão um grave fundo musical. E.V. elogiou o poema, elogiou meu violão mas reagiu na hora: éramos tão jovens, que conversa era essa de desencanto, de pessimismo, que horror! estávamos mais intoxicados do que os românticos do romantismo. “Vocês ainda vão ver tanta coisa, meninos, vão viver tanto e viver é tão bom. Tebas não tem uma porta, mas mil e nessa idade estão todas abertas!”
Fiquei olhando meu copo: através do cristal a vida ficava tão transparente.
Lygia Fagundes Telles, in A disciplina do amor

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